Ao longo dos anos, o ato de falar sozinho sempre foi observado como um dos principais sintomas para o diagnóstico da esquizofrenia. O médico psiquiatra poderia até estar em dúvida se era normal pendurar sacolas de mercado cheias de água nas hélices do ventilador, mas falar sozinho não deixava nenhuma dúvida.
Uma vez que crianças geralmente falam sozinhas, dentro de um processo de amadurecimento do cérebro, falar sozinho em público na vida adulta era um hábito liberado apenas para os atores, que poderiam desempenhar grandes monólogos em uma praça, por exemplo. Mesmo assim, o que era apenas arte seria interpretado como loucura pelos outros transeuntes sem tanto contato com o mundo cênico.
Não falar sozinho em público é, sobretudo, um gesto de autocontrole, um pudor que temos justamente para não demonstrarmos uma possível fraqueza mental para uma série de desconhecidos. Eventualmente até falamos sozinhos, quando estamos sozinhos em casa, no trânsito, ou no deserto do Saara. Mas jamais em um ambiente público.
Tudo isso, pelo medo do julgamento. Certamente, quando você presencia alguém falando sozinho em um shopping, você julga que essa pessoa está transtornada. Não só você, como todos os outros consumidores dentro do estabelecimento. Ficam todos esperando apenas um sinal divino para ligar para os bombeiros, para que eles se dirijam até o local com escopetas e neutralizem o maluco que perturba o consenso neurotípico.
No entanto, a evolução tecnológica tem mudado esse cenário. A invenção do celular nos permitiu falar com pessoas distantes a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, transmitindo nossas vozes por códigos binários em torres de transmissão. Logo, os fones de ouvido permitiram conversar com o celular guardado no bolso, apenas apertando um botão ao longo do fio do fone, botão esse que, para ser acessado, fazia com que encostássemos desajeitadamente o queixo contra o peito.
Tenho clara em minha memória a primeira vez que eu vi uma pessoa conversando no celular com fone de ouvido. Era uma figura sempre lembrada nesse blog por seu comportamento vanguardista: o Zequias. Um dia ele passou pelo saguão do IL falando sozinho com fones encaixados em sua orelha e a pulsão do julgamento saltou em todo meu organismo e em todos que observavam a cena. Zequias logo explicou o hábito, que não deixou de ser menos estranho.
No entanto, o verdadeiro boom do hábito surgiu recentemente, com a proliferação dos fones de ouvido sem fio. Conectados por bluetooth e custando uma pequena fortuna, eles estão pendurados nas orelhas de todo mundo agora. Permitindo falar com as mãos livres, sem praticamente nenhum contato físico com os aparelhos que permitem a conversa.
Continua sendo perturbador você passar por pessoas que falam sozinhas por aí, até perceber que elas não falam sozinhas, que elas têm grandes antenas espetadas em suas orelhas Que enquanto fazem atos aparentemente banais, elas não escutam as vozes de suas cabeças, mas as vozes retransmitidas dentro de suas cabeças.
Ou não.
Eis aqui o fato que pode ser mais perturbador.
A proliferação de fones de ouvido sem fio pode ser a libertação final para as pessoas que sempre sonharam em falar sozinhas em público sem parecer um maluco. Enquanto olhamos a moça com fones de ouvido falando e imaginamos que ela conversa com uma amiga sobre o preço da gasolina, ela pode estar simplesmente delirando sozinha, colocando para fora o seu monólogo interior.
Nós jamais vamos saber se esses dois caras estão conversando entre eles ou conversando com suas vozes interiores |
Eis o ponto. A partir de agora jamais saberemos se uma pessoa está realmente falando no telefone por meio de fones de ouvido ou se ela está apenas falando sozinha com equipamentos presos no ouvido. É a crise dos psiquiatras que não saberão mais diagnosticar os esquizofrênicos, porque eles poderão alegar que estão conversando com a mãe (vai ser preciso descobrir que essa suposta mãe está falecida há 16 anos para fechar o diagnóstico).
Jamais teremos certeza se nosso instinto de enxotar as pessoas que falam sozinho poderá ser cumprido. Ou, pior ainda, iremos nos recriminar por julgar erroneamente uma pessoa que deve estar apenas combinando um jantar no sábado a noite.
Nossas certezas estão em dúvida, nossas verdades foram abaladas. Mais um pilar da nossa sociedade que começa a ruir graças a tecnologia.
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