Os 10 anos do 7x1

Um dos esquetes mais populares do grupo britânico Monty Python é o Jogo de Futebol dos Filósofos. Presente em um especial alemão divulgado pelo grupo em 1972, o vídeo mostra um duelo entre filósofos alemães e gregos e contém algumas das características marcantes dos humoristas. O texto cheio de citações herméticas, o humor frustrante e nonsense. Não é dos meus esquetes favoritos, apesar de reconhecer seu texto fascinante.

A melhor peça de humor sobre futebol já veiculada, na verdade não é um esquete tirado das cabeças de brilhantes roteiristas. É algo que ocorreu na vida real, assistido simultaneamente por milhões de pessoas ao redor do mundo. Estamos falando, é claro, de Brasil 1x7 Alemanha, o eterno 7x1, que nesta segunda-feira completa 10 anos de existência.

Há todo um contexto histórico: o Brasil disputava uma Copa do Mundo em casa. Aos trancos e barrancos conseguiu chegar até a semifinal do torneio, em busca do sonhado hexacampeonato. Foi uma Copa do Mundo recheada de memes, com histórias fascinantes sobre o intercâmbio cultural entre brasileiros e estrangeiros, incluindo o lendário inglês que, vestido de cavaleiro, não tomava banho há alguns dias e nem sabia mais qual cerveja bebia.

O Brasil amanheceu naquele 8 de julho de 2014 sob tremenda expectativa. Uma semifinal de Copa do Mundo é um momento sempre grandioso, o último passo antes da final. O Brasil não teria seu melhor jogador, Neymar, que fraturou uma vértebra, tampouco seu capitão, Thiago Silva - grande liderança técnica, apesar de ter chorado convulsivamente sentado sobre uma bola na disputa de pênaltis contra o Chile nas oitavas de final.


A seleção entrou em campo com:

Júlio César - Goleiro experiente, melhor do mundo em 2010 e ainda na elite mundial. Certeza de ser a última barreira aos ataques adversários.

Maicon - Um lateral direito potente e experiente, que havia ganho a titularidade na partida anterior, no lugar de um incrivelmente frágil Daniel Alves.

Dante - Zagueiro desconhecido no Brasil, mas que fez carreira justamente na Alemanha, chegando até o poderoso Bayern de Munique. Ele conhecia os alemães, nos diziam.

David Luiz - Com sua carismática cabeleireira, o camisa 4 se transformou em ídolo nacional e das crianças. Nosso coração em campo.

Marcelo - Vivendo o auge no Real Madrid, melhor lateral esquerdo do mundo, dos jogadores mais habilidosos do planeta.

Fernandinho - Experiente volante do Manchester City, que ganhou a posição ao longo do torneio, dando segurança na saída de jogo e proteção à frente da defesa.

Luiz Gustavo - Outro desconhecido que fez carreira no futebol alemão. Ao lado de Fernandinho tentavam dar mais segurança para o meio campo brasileiro.

Hulk - Com seus potentes chutes era sempre uma expectativa na bola parada. Ainda não havia jogado nada na Copa, mas quem sabe agora.

Oscar - Menino tímido de 22 anos que assumiu a criação no meio de campo brasileiro, espécie de oásis de imaginação no meio de um deserto de brutalidade.

Bernard - O substituto de Neymar, o menino que tinha alegria nas pernas, iria estrear como titular na Copa em plena semifinal no Mineirão, em sua cidade natal. É sério que a gente achava que ia dar certo?

Fred - Nosso centroavante pouco havia visto a bola no torneio e marcara apenas um gol meio sem querer. Mas era um nome experiente, talhado para jogo grande.

Bem, assim começamos e terminamos escorraçados.

No último jogo, contra a Colômbia, Neymar sofreu uma lesão em uma vértebra depois de receber uma joelhada nas costas. Dizem que ele ficou lá exposto no meio do vestiário, como se estivesse sendo velado pelos colegas, que ainda precisaram ver seu jogador mais talentoso aos prantos durante toda a viagem de avião entre Fortaleza e o Rio de Janeiro.

Não me parece que foi das decisões mais acertadas do ponto de vista da preparação psicológica, mas enfim.

O avião que levou o Brasil até Belo Horizonte, palco do confronto contra a Alemanha, ganhou a inscrição #éTóiss, curioso bordão utilizado por Neymar à época. O avião era da Gol, ironia para quem logo mais levaria sete.

O hino nacional teve o capitão David Luiz abraçado a Júlio César gritando o hino nacional segurando uma camiseta do Neymar, como se o rapaz realmente tivesse passado dessa para a melhor, jogadores quase chorando na parte do Terra Adorada, o menino Bernard, quase tendo o seu 1,64 m de altura encoberto pelo mascotinho da frente.

O jogo começou e após um chute travado aqui, outro para fora acolá, a Alemanha fez 1x0 em um escanteio finalizado com o pé. Quatro jogadores brasileiros correram loucamente em direção a um ponto no qual a bola não poderia ser finalizada, deixando Thomas Müller livre de frente para o gol.

O desespero começou a ficar latente e então, quando fomos ver, em seis minutos os alemães fizeram quatro gols - um recorde mundial e o jogo já estava 5x0.

Estes seis minutos são, se você parar para pensar, uma das coisas mais engraçadas que a humanidade já viu. Um país vendo seus sonhos desabarem, enquanto uma criança chorava com o rosto afundado em um copo de refrigerante. Choro iniciado após o terceiro gol, mas que a TV só conseguiu filmar depois do quarto, porque não teve tempo antes. Uma mulher de chapéuzinho esquisito chorando. Pessoas chorando loucamente, enquanto a Alemanha tocava a bola de um lado para o outro, Fernandinho era desarmado como se fosse um iniciante na aula de defesa pessoal, o David Luiz correndo loucamente para o ataque, enquanto o Dante, coitado, corria em círculos para tentar encontrar uma bola, bola essa que ele nunca conseguiu alcançar, e o Júlio César caia de um lado para o outro, e o Marcelo ia em direção a linha fatal como se fosse possível salvar alguma coisa e meia dúzia de jogadores brasileirão permaneciam imóveis no campo de ataque, atônitos, incapazes de sequer se desesperar, de correr como Marcelo, de fazer uma falta, de simular uma lesão na virilha. Restou o rosto de Fred tentando respirar profundamente e pedindo calma para os seus companheiros, como se o Brasil precisasse de calma naquela hora. Tudo o que era preciso era desespero. Mas aquele desespero de sobrevivência, aquele que leva alguém a sair correndo do prédio quando sente um cheiro de fumaça.

O primeiro tempo terminou 5x0. Galvão Bueno não sabia o que falar. Ninguém sabia. No intervalo já não existia esperança por ainda haver 45 minutos de jogo. Havia desespero por esse fato e a incerteza do que os alemães poderiam fazer conosco. A maior goleada de todos os tempos em Copas do Mundo foi registrada em 1982, quando a Hungria fez 10x1 sobre El Salvador. Já estávamos no meio do caminho de superar El Salvador.


Os alemães não demonstraram qualquer maldade em seu coração e deixaram o jogo passar. Mas, infelizmente, as coisas estavam tão fáceis que, vez por outra, eles não tinham outra alternativa que não fosse fazer o gol. Logo o placar registrava 7x0. O 8x0 quase saiu, mas em um contra-ataque Oscar fez um bonito gol para decretar o 7x1.

Esse gol gerou o cabalístico resultado final. Consagrou o 7x1. O 7x1 acabou sendo pior do que um 7x0, porque o 0 representa o nada e mesmo o mais deprimido dos indivíduos têm dificuldade em mensurar a inexistência do 0. O 7x1 não. Esse 1 que nos foi reservado demonstra a solidão, as batalhas que enfrentamos. Somos apenas um contra 7, uma batalha perdida da vida. Oscar, por linhas tortas, entrou para a história.

Na saída do jogo um transtornado David Luiz - que em determinado momento do jogo reagiu a uma dividida com Thomas Müller tentando chutar a bola sobre o alemão, o que levou o Galvão Bueno a decretar “não faça isso David, você virou o ídolo de tantas crianças” e nos faz pensar que, caramba, coitadas dessas crianças, pois bem, esse transtornado David, com os olhos cheios de lágrimas, mas lágrimas confusas, de quem não sabe direito o que está sentindo, que não sabe nem de onde tirar forças para chorar, deu uma antológica entrevista dizendo que só queria dar alegria ao seu povo. 

Vejam vocês que ironia, que nonsense, que frustração. Um enorme brainstorm de roteiristas não conseguiria criar cenas como essas.

Claro que não terminou aí. No dia seguinte, o técnico Felipão e sua comissão técnica concederam uma entrevista coletiva. Na qual eles defenderam ferrenhamente seu trabalho. Felipão apresentou uma série de planilhas de Excel para dizer que o trabalho havia sido feito. Vocês conseguem imaginar isso? Um planilhamento de atividades para contrapor a pior derrota da seleção brasileira em todos os tempos.

Ao final da entrevista, o auxiliar Carlos Alberto Parreira chegou ao ápice dessa história. Ele pediu para ler uma cartinha escrita por uma suposta Dona Lúcia, enaltecendo o trabalho dele. Sim, imagine falir uma empresa e mostrar uma carta fake como prova de que você fez tudo certo. É isso que o Parreira fez.

A carta elogiava Felipão. Dona Lúcia dizia que ao ligar a TV viu um homem íntegro e corajoso falando à nação e que ficou triste ao ver que o ser humano era muito cruel. Ela queria estar comemorando outro resultado, mas sabia que ninguém perde por vontade própria. Felipão proporcionou momentos de grande felicidade para Dona Lúcia e ela só queria agradecer. Desejou boa sorte nos próximos jogos (uma derrota de 3x0 para a Holanda) e que ela podia não entender de futebol, mas entendia de seres humanos. Concluiu com uma frase misteriosa:

“O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer”.

Pois bem, Dona Lúcia nunca foi encontrada porque a CBF disse que ela preferiu ficar anônima. Ainda urge que um interesse jornalístico mais forte nos leve ao Ghost Writer da cartinha.

E o pior é que esse amanhecer da alegria nunca chegou ao futebol brasileiro. Vivemos uma longa noite desde então.

Mas, que olhando agora, que foi muito engraçado, sim foi.

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