Grandes Letras Clássicas da Música Brasileira (VIII)

Sertanejo dos anos 90

Sempre que uma Festa Flashback Anos 90 (sim, elas incrivelmente já existem) é organizada, a seleção musical dá um grande destaque para os experimentos musicais do É o Tchan, para a prosa modernista do Molejo e seus pares do pagode noventista. Há espaço ainda para a música internacional e a invasão das Boy Bands e Girl Bands, como os Backstreet Boys, as Spice Girls e até aquela única música do Five. Vai ter Britney Spears e até em um momento de confusão mental dos organizadores, vai sobrar para Kelly Key.

Inexplicavelmente, no entanto, essa seleção de músicas - que quando os organizadores foram mais cuidadosos vão até incluir um momento de contemplação com o Pop Rock da época (Wonderwall, Linger) e a clássica Disco dos anos 90 - acaba por excluir o Sertanejo dos anos 90.

De fato, a música sertaneja dessa época está situada em um limbo entre a explosão comercial da virada dos anos 80 para os 90, protagonizada pelos AMIGOS, e a era de domínio materializada pelo chamado sertanejo universitário. A música country dos anos 90 experimentou uma grande influência do gênero norte-americano e suas letras ainda se mostravam em um meio termo entre o romance clássico e a descoberta da farra pós-divórcio, ou o outro lado da traição. Resgatemos alguns dos melhores exemplares dessa época.

Gian & Giovani - Convite de Casamento
“O tempo passou e eu sofri calado, não deu pra tirar ela no pensamento. Eu ia dizer que estava apaixonado, recebi o convite do seu casamento com letras douradas num papel bonito. Chorei de emoção quando acabei de ler. Num cantinho rabiscado no verso, ela disse meu amor eu confesso: estou casando, mas o grande amor da minha vida é você”
Não importa o quão a sua vida esteja ruim. Vocês jamais vão sofrer calados tanto quanto esses caras
Quando Bob Dylan ganhou o prêmio nobel no ano passado, o assunto foi amplamente discutido e escondeu outro assunto urgente: Gian & Giovani mereciam pelo menos um prêmio Jabuti por esta obra literária. Sua letra cinematográfica aponta as contradições do amor e consegue contextualizar o leitor sobre um romance shakesperiano. Impossível não se emocionar junto com o cantor e ver o convite de casamento com letras douradas se materializar em sua frente, tal qual o recadinho que nos faz perguntar: porque? Porque esta pobre coitada está embarcando em um casamento infeliz, deixando a felicidade de lado. Roteiro mais complexo do que muito filme estrelado por Ashton Kuchter e que, se levado aos cinemas, poderia se transformar na versão nacional de As Pontes de Madinson.

Ataíde & Alexandre - Laço Aberto
“Te amar foi um erro, foi um erro te amar, mas eu erro outra vez se acaso precisar. Por você não me arrependo das loucuras que eu já fiz. Por você estou sofrendo, mas te amar me faz feliz. O amor é um laço aberto, muito perto, tiro certo, esperando alguém cair, iludir, se ferir. Seu amor é desse jeito manhoso, safado e gostoso demais. O amor é um prato quente, atraente, envolvente, faz a gente se servir, engolir, repetir. Seu amor é um jeito bom de viver, eu não vou te esquecer nunca mais”
Nada faz sentido nessa imagem
Eita porra! A taxa de natalidade do mundo aumenta toda vez que essa música é executada. Incrível como é difícil descobrir o real autor desta relíquia musical brasileira. Começo redundante, autor consciente que vai quebrar a cara, mas que faz isso, porque, enfim, quebrar a cara é uma consequência da busca incessante pelo prazer carnal. Ataíde e Alexandre, seja lá onde estiverem, mereciam estátuas em praças públicas por essa poesia.

Sandro & Gustavo - Garagem da Vizinha
“Põe o carro, tira o carro, a hora que eu quiser. Que garagem apertadinha, que doçura de mulher. Tiro cedo, ponho a noite e também de tardezinha. To até trocando óleo na garagem da vizinha”
Esses jovens que parecem que, no máximo, invadem a garagem da vizinha para bater punheta, eles tem enorme responsabilidade na inserção de malícia no universo sertanejo
Se vocês soubessem como é difícil encontrar aqueles que seriam os verdadeiros autores desses clássicos sertanejos. A música sertaneja vive em uma espécie de eterno Creative Commons, e todo mundo canta a música de todo mundo. Garagem da vizinha é uma espécie de marco temporal, que antecipa os tempos da farra sertaneja. A letra inteira é uma metáfora sexual, com o tradicional fetiche sexual pela vizinha, fazendo com que o público desse gênero e o Brasil percebesse: ao invés de apenas sofrer pelo amor não correspondido, era possível viver na farra eterna, até chegar ao genial trocadilho da lubrificação.

Rio Negro & Solimões - De São Paulo a Belém
“A saudade é um prego, coração é um martelo. Fere o peito e doí na alma e vai virando um flagelo”
Em algum lugar, um jornalista influenciado por Jack Kerouac há de escrever um texto de 17 páginas descrevendo sua viagem de metrô
Essa simpática dupla conquistou o Brasil com esta canção que é uma espécie de On The Road caipira, uma viagem psicotrópica pelo Brasil Rural. A percepção de que eles seriam a versão tupiniquim de Jack Kerouac ficou perdida por muito tempo, graças ao refrão que não faz o menor sentido. Mas o que importa? Muitas coisas de Kerouac não fazem o menor sentido e a gente tenta entender só pela boa vontade com a geração beat.

Daniel - A Jiripoca vai piar
“Hoje a jiripoca vai piar, vai piar a noite inteira ai ai. Hoje eu quero enxugar, vou tomar muita cerveja, hoje eu quero aliviar. Hoje a jiripoca vai piar, vai balançar o pé da roseira ai ai. Hoje eu tô com dó de mim, caba não caba sim, tô facim, facim”
Sem comentários
Após a trágica separação de seu ex-parceiro (provocada por um acidente fatal de carro), Daniel tenta se afastar de sua antiga persona romântica, constituindo um personagem farreiro e o protótipo sertanejo do século seguinte, uma espécie de precursor de Michel Teló. Aparentemente, a letra não faz muito sentido, uma vez que Jiripoca é um peixe e peixes não piam, o que significa uma confusão biológica do autor, provavelmente provocada pelas altas doses de bebida alcóolicas consumidas, que levam a um sentimento de autocomiseração e uma brecha interpretativa no final: cu de bêbado tem dono? Entendedores entenderão.

(Em uma grande ironia, a Jiripoca vai virar é de 2001, o que me leva a cometer o mesmo erro dos organizadores de Flashback que tocam Kelly Key. Ou será que devemos chamar esse gênero de Sertanejo da virada do século? Sertanejo Millenial)

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