Biscoito da Sorte

Ano após ano, os preparativos para o Réveillon acabam por proporcionar um conhecido efeito colateral. O Tender® e o pavê do jantar da virada já estão encaminhados, mas já passou do meio-dia e não há nada para se almoçar em casa. Sentimentos conflitantes invadem a cabeça, que pensa em comer um pedaço do presuntão de mais tarde, mas aquilo é encarado como uma traição aos princípios, à família, aos amigos e ao próprio universo. Simplesmente não almoçar, sob o pretexto de preparar o estômago para o desbunde noturno é outra hipótese aventada, mas ninguém aguenta um jejum desse tamanho.

Como em tantos outros anos, a solução é apelar para aqueles estabelecimentos que preparam comida e os vendem para seus clientes por um preço tabelado. Sempre há aquela expectativa se o restaurante da esquina vai abrir no dia 31 de dezembro, ou se por algum acaso ele declarou folga coletiva, entrou em recesso ou decidiu fechar as portas por simples vontade dos seus proprietários. Anos e anos de experiência mostram que ele sempre está aberto, com sua salada murcha, seu frango equivocadamente temperado e uma maionese atômica. Mas as lembranças de ano anteriores não são capazes de acalmar a alma. O 31 de dezembro sempre provoca essa estranha sensação de sitiamento geral e que os não precavidos irão perecer de fome.

Mas é claro que, felizmente, a tecnologia nos proporcionou a invenção dos aplicativos de delivery. É só entrar lá, conferir o que está aberto, fazer o pedido e receber uma comida no conforto do seu lar, sem precisar entrar em um carro, achar uma vaga de estacionamento, encarar filas e procurar lugar para sentar. Quem estiver no aplicativo é porque está entregando comida, sem receios de viagens perdidas em busca de alimentação mediana.

Mesmo com todos esses benefícios já apontados, é preciso reconhecer que o iFood também é uma perdição. Aquela lista enorme de restaurantes desconhecidos, avaliações díspares, taxas de entrega variantes, tempos de entrega conflitantes em relação a distância que o motoqueiro precisará percorrer entre o estabelecimento e sua casa. Muitos lugares parecem interessantes, mas nenhum deles é realmente cativante. Somos estimulados ao liberalismo de escolher um lugar novo, mas confrontados pelo nosso conservadorismo alimentar, acabamos escolhendo pelo bom e velho China in Box.

Existiu um tempo em que as pessoas ligavam para pedir China in Box. Aliás, existiu um tempo em que as pessoas ligavam para pedir comida. Indo mais além, existiu um tempo em que as pessoas LIGAVAM, apenas isso. Ninguém sabe exatamente onde é que o restaurante de comida chinesa fica localizado, parece que ele tem várias sedes espelhadas pela cidade, e que, pasmem, é até possível comer presencialmente em uma delas. Mas isso deve ser encarado como um extremo ato de extravagancia, diria até mesmo que de loucura. O que todos querem é apenas receber aquele caixotinho com yakisoba na sua casa, dentro de um prazo de tempo aceitável.

O Yakisboa chega, você come e fica com aquele gosto de shoyu na boca durante o resto do dia, para  refletir durante algumas horas se aquela carne realmente era bovina e que talvez o brócolis, a couve-flor e a cenoura tenham sido retirados de alguma caixa de despejos de uma feira. Mas, afinal, o Yakisoba não é apenas esse macarrãozinho meia-boca que você pede quando o mundo te empurra para essa situação. De alguma forma, a comida chinesa é uma precursora desse clichê do mundo corporativo de falar que os consumidores vivem experiências. O China in Box sempre será essa experiência de pedir comida em casa, saborear um macarrão que por vezes parece gostoso e em outras é enjoativo, manipular aquela caixa que parece muito prática mas sempre acaba por provocar uma enorme sujeira e, o ápice, é claro, o biscoito da sorte. Um Kinder Ovo para adultos.


Não sei, realmente não sei, se biscoitos da sorte realmente existem na China. Se por lá todo mundo termina de comer um macarrão com molho de soja, um pato laqueado ou um arroz com presunto e logo emenda com um biscoitinho levemente adocicado, cujo interior é preenchido por um bilhetinho com mensagem positiva e seis números da Mega Sena, entre outras coisas, porque desconheço se na China existe uma Mega Sena.

Poucas pessoas reservaram um instante da sua vida para pensar no biscoito da sorte. Ele é gostoso? Não. É um pouco docinho, mas não o suficiente para adoçar sua vida e suprir aquela necessidade por um açúcar pós-refeição. Ele traz mensagens em seu interior, mas elas são boas? Não. Geralmente é o clichê do livro de autoajuda, uma frase que só provoca contrariedade, ou na melhor das hipóteses, vazio interior. Se os biscoitos da sorte fossem abolidos da sociedade, é provável que ninguém sentisse falta, exceção feita aos seus fabricantes que garantem seu sustento com sua comercialização.

Já os números da mega-sena estão lá, você os fita brevemente e nem por um segundo cogita a possibilidade de marcá-los em um cartelinha com os estrelares dizeres “Mega da Virada”. Pior ainda é tentar entrar no glorioso site da loteria federal para fazer uma aposta e não conseguir, porque o Brasil inteiro teve essa mesma ideia no último dia em que seria possível concorrer a chance de virar milionário.

Frustração absorvida, gosto de yakisoba ainda na boca, o jantar do Réveillon se aproxima. Todo aquele tender com molho agridoce irá se aglomerar com espumante e pavê dentro do seu estômago, a noite de sono não será tão tranquila quanto você gostaria, mas isso era previsível, assim como previsível é a leve ressaca da manhã seguinte, a gloriosa manhã do primeiro dia do novo ano.

Uma leve passada de olho pelos jornais te mantém informado sobre os legados das festas de fim de ano, o primeiro bebê nascido no novo ano, a primeira tragédia do novo ano e que um grupo de malucos de uma cidade inominável ganhou uma cacetada de dinheiro na Mega da Virada. A manchete informa os números sorteados e eles provoca um Déjà-vu, mas sua cabeça pensa que é apenas uma lembrança dos tantos sorteios noticiados em primeiros dias de vários anos. Por sorte ou azar, não há a menor possibilidade de conferir o papel do bilhetinho da sorte que veio dentro do biscoitinho entregue por um motoqueiro junto ao yakisoba do dia 31/12, que agora jaz na lata de lixo, parcialmente destruído embaixo de restos de arroz e ervilha, impresso com os mesmos seis números sorteados em rede nacional pelo Luigi Baricelli na noite anterior.

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