Cenas da Pandemia: TikTok

O TikTok é uma das maiores novidades que a pandemia de Covid-19 trouxe ao nosso cotidiano. O aplicativo chinês já existe desde 2016, mas até a virada do ano era completamente desconhecido e inofensivo em grande parte do mundo ocidental. O conterrâneo do novo coronavírus é um aplicativo que permite a edição de vídeos rápidos e sua publicação para o mundo inteiro ver.
Não sei vocês mas eu sempre fiquei bem intrigado com essa logo que parece ter sido impressa em uma impressora bem vagabunda

No começo do ano, quando as primeiras pessoas começaram a morrer de Covid-19 fora da China, as primeiras publicações ocidentais de TikTok eram dedicadas a animais fofinhos e preparação de comidas. Havia também um ou outro diretor amador proporcionando curtas-metragens intrigantes, no extremo limite entre o cafona e o revolucionário.

Pois bem. Isso foi alguns meses atrás. Como tudo em 2020, os fatos se sucedem de maneira dinâmica e cada dia faz com que o anterior pareça pertencente ao século passado. As coisas ainda podem mudar daqui pra frente, mas o fato é que na metade do ano da desgraça de 2020, estamos todos aprisionados em uma espécie de delírio coletivo provocado por este invasor chinês.

A grande sacada do TikTok é disponibilizar um grande acervo de áudio para que as pessoas insiram em suas gravações caseiras, facilmente editáveis. Isso permite uma grande produção de dublagens e de dancinhas. Dublagens e dancinhas. Dublagens e dancinhas.

Dublagens de Paulo Gustavo, de praticamente todas as cenas da trilogia Minha Mãe é uma Peça, de todo acervo produzido pela menina Maísa desde que ela era recém-nascida, da Inês Brasil, memes antigos, memes novos e, céus, coisas que eu não tenho a menor ideia de onde é que surgiram e quais seriam as razões para que alguém perdesse seu tempo fazendo isso.

É preciso dizer que o TikTok apenas potencializou um fenômeno que já era observado há algum tempo. Seu grande ancestral talvez sejam os vídeos de pessoas dublando músicas no carro. No início da pandemia começaram a surgir dublagens mais elaboradas de vídeos icônicos, que guardavam um pouco de humor depreciativo, contemplando o fato de estarmos aprisionados em casa assistindo várias vezes as mesmas coisas. Tempos pré-históricos, onde as pessoas se gravavam ao lado de uma outra tela que exibia o vídeo original, declamando o texto junto ao seu verdadeiro autor. O TikTok encurtou caminhos e possibilitou que todos escondessem sua voz, apenas dublando.

Onde houver um personagem careca
estridente de Paulo Gustavo haverá
uma dublagem em potencial

Este novo humor inventado pelo TikTok é algo que eu ainda não captei, ainda não peguei exatamente qual é a graça de dublar Paulo Gustavo fazendo alguma piada sobre a vida sexual de alguém, sendo que na maioria das vezes as pessoas não tem expressividade suficiente para garantir a carga dramática necessária para criar conexões com o espectador. Estas produções acabam por ser muito mais uma forma de se autoproporcionar prazer, esse prazer que temos em vermos nosso próprio rosto e de alguma maneira acreditarmos que somos supertalentosos. Ou não.

Agora, as dancinhas. Todo dia antes de dormir, perdido entre pensamentos destrutivos relacionados ao Governo Federal, eu reservo um espaço da minha mente para pensar em quem são os autores destas composições.

Existem desde musiquinhas instrumentais que permitem que os TikTokers exibam seus corpos e provoquem excitação sexual ou repúdio no espectador, até composições mais intricadas que permitem uma série de interações aleatórias. Enquanto uma batida eletrônica rola ao fundo uma voz que parece surgida de programa de auditório do SBT incita os usuários do aplicativo a dizerem seus nomes, suas idades, suas alturas, fazerem uma dancinha e por aí vai. Invariavelmente as melhores versões acabam produzindo material para novas dublagens, dando início a um ciclo interminável, uma espécie de segunda onda de contágio.

Há ainda outra modalidade, essa permitida apenas as pessoas que tiveram o privilégio de ficarem confinadas em casal. Enquanto uma batida totalmente aleatória toca ao fundo, a mesma voz de animadora de programa infantil do SBT vai citando uma série de fatos, experiências sexuais, crimes previstos no código penal brasileiro e os participantes da gincana devem dizer se já praticaram estes atos. Uma confusão danada, que só serve para descobrir quem já praticou felação no namorado da melhor amiga no cinema, ou coisas assim.

O TikTok de certa forma proporciona aos reles mortais o prazer de poder se sentir igual a um influencer – pessoas que já fazem isso naturalmente para alguns milhões de pessoas.

Não dá para afirmar qual será a duração do TikTok. Se vai durar mais ou menos do que o coronavírus. Se ele veio para ficar igual ao Instagram, ou se será um furacão passageiro na vida da sociedade tal qual o SnapChat. A única certeza que temos é que quando tudo isso acabar, apenas uma coisa vai ficar: a vergonha e o constrangimento moral.

PS: Não é de se duvidar que no dia do Juízo Final as pessoas serão colocas em um grande auditório televisivo e seus TikToks serão exibidos diante da multidão. Deus, São Pedro, o Arcanjo Gabriel ou um estagiário qualquer irá perguntar “e isso aqui. Porque você resolveu dublar isso aqui? E essa dança? Quem você queria agradar com isso?”. E naquele mar de constrangimento o público irá definir se você vai para o céu, para o inferno, ou para a putaqueopariu do purgatório. O grande reality show final de nossa existência.

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