Relembrando Desenhos Infantis

Quando eu era criança, não havia muita opção de desenho animado para assistir. A programação televisiva matinal oferecia os mesmos desenhos de sempre, tudo se resumia ao Pernalonga, ao Tom & Jerry, Pica Pau, clássicos da Hanna-Barbera - incluindo aí aquela chatíssima série dos Superamigos.

Em relação às grandes produções cinematográficas, a situação não era muito diferente. A Disney lançava um desenho por ano, o que nos levava a um compromisso anual com as salas de cinema. Depois de assistir O Rei Leão em tela grande, você precisaria esperar um tempo até que a fita VHS chegasse a sua locadora favorita.

Depois disso, você poderia alugar o filme para assisti-lo no fim de semana - talvez duas vezes, nunca se esquecendo de rebobinar a fita - ao que parece, não rebobinar a fita poderia render severas punições por parte dos proprietários da videolocadora.

Lembro que Toy Story foi um filme muito comentado no meu círculo social de crianças de 9 anos quando ele chegou às prateleiras da Coxipó Vídeo em Cuiabá, em meados de 1996. Era um filme de visual bem diferente - animação 3D diziam, com uma história diferente do usual, urbana, envolvendo brinquedos, nada de princesas de reinos distantes ou animais órfãos buscando redenção.

Assisti Toy Story apenas uma vez, no já citado ano de 1996. Nossos pais, geralmente, não deixavam que você voltasse a alugar um filme já alugado anteriormente. Esse negócio custa dinheiro, você já viu isso, vai ver alguma coisa diferente. Para assistir o desenho novamente era preciso esperar ele passar na TV, o que normalmente acontecia quando você já tinha perdido o interesse.

Até havia um outro amigo que tinha em sua casa uma fita VHS de Toy Story, ou sei lá, de A Bela e a Fera. Mas mesmo nós, as outras crianças, considerávamos aquilo uma extravagância sem tamanho. Era até esquisito olhar aquelas fitas e suas embalagens de papelão, sem aquele plástico maltratado das videolocadoras.
Bem, não faz o menor sentido que exista um VHS de Toy Story 3, que foi lançado em 2010. Menos ainda que uma criança assista isso e ainda tenha uma fita em casa para assistir várias vezes. Isso só pode ser uma experiência científica.


Hoje em dia isso mudou. Há uma profusão incontável de desenhos disponíveis nos canais de assinatura e nas mais diversas redes de streaming. Uma criança pode passar o dia inteiro assistindo incontáveis reprises de Frozen e, não tenha você qualquer resquício de dúvida de que, se for dada essa possibilidade a criança, é exatamente isso o que ela vai fazer.

Recentemente embarquei em uma jornada de tentar fazer meu filho de 5 anos assistir outros desenhos, que não uma 178ª reprise da trilogia do Relâmpago McQueen. Minha estratégia foi apresentar alguns desenhos que havia assistido na minha infância ou breve juventude, desenhos aparentemente inofensivos que seriam uma bela zona de conforto para mim e, quem sabe, para os meus filhos. 

Ou não.

Porque a nossa memória muitas vezes nos trai. Alguns dos desenhos mais inocentes dos quais nos lembramos são peças dramáticas, efetivamente impróprias para algumas faixas etárias que ainda não tem a maturidade suficiente. Vou falar de quatro deles, começando pelo já citado Toy Story.

Toy Story

Do que nos lembramos? De um divertido filme que parte da seguinte suposição: como seria se os nossos brinquedos tivessem vida própria e sentimentos. Tem a rivalidade divertida entre o Xerife Wood e o astronauta Buzz Lightyear e uma série de outros personagens divertidos, que ajudam a criança a aprender sobre companheirismo.

O que realmente é: Durante mais da metade do filme os brinquedos ficam perdidos do seu dono, alimentando uma angústia crescente na criança de cinco anos. Eles ficam perdidos na estrada, sofrem acidentes e, para piorar, são severamente torturados pelo vizinho Sid. Sim, aparentemente 25% do desenho se passa no laboratório desse menino, espécie de Josef Mengele dos brinquedos.

Tudo termina bem e todos ficam amigos, mas há todo esse recheio que se assemelha a um terror psicológico e que nos deixa um questionamento: como crianças conseguiam comprar explosivos por correspondência em 1996?

Procurando Nemo

Do que nos lembramos? Da peixinha Dory esquecida, de uma série de personagens aquáticos fofinhos, vilões atrapalhados e uma jornada sobre laços familiares.

O que realmente é: Bem, o começo do filme mostra dois peixes felizes com a perspectiva de seu novo lar e dos filhos que eles vão ter. Então uma barracuda extermina a família, deixando apenas o viúvo e o jovem Nemo. Imaginem se Esqueceram de Mim, por exemplo, começasse com os dois assaltantes assassinando brutalmente toda a família, menos o jovem Kevin McAllister? Seria divertido? Seria filme de criança?

Depois disso, o jovem Nemo, compreensivamente super-protegido pelo traumatizado pai, acaba capturado por um mergulhador e vai parar no aquário de uma criança que costuma matar peixinhos de estimação.


Você já deve ter percebido que, na perspectiva do pai do Nemo, isso aqui é um filme de terror, um pesadelo inigualável. No máximo uma comédia bizarra do Almodóvar e pouca importa se o final é feliz. É muito trauma e tensão para um filme só.

A Era do Gelo

Do que nos lembramos? Do mamute rabugento e da preguiça com TDAH, além daquele esquilo que tenta esconder a sua noz.

O que realmente é: Um épico situado no meio de uma catástrofe climática. Um grupo de tigres resolve matar uma criança para se vingar dos estragos que os seres humanos fazem na vida selvagem. Após um ataque a tribo primitiva, uma mãe salva o seu bebê, mas acaba morrendo e confiando a criança a um mamute e uma preguiça. Um tigre se aproxima dos dois com o único objetivo de matar todo mundo, o que quase acontece algumas vezes. Há inúmeros confrontos violentos entre animais, incluindo mortes e um belo final feliz com o bebê órfão entregue a sua tribo.

Os Incríveis

Do que nos lembramos? Do super herói aposentado, das crianças com poderes divertidos e daquele bebê fofinho.

O que realmente é: Bem, há mais mortes nesse filme do que em qualquer um da série do Rambo. Incluindo o vilão que é engolido pela hélice de um avião. Algo que nem o Tarantino conseguiria pensar.

Em um futuro distante, quem sabe eu apresente novos filmes traumáticos para meu filho.

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