Um pulo para a eternidade

Encostou-se na cadeira e acendeu um cigarro. Olhou para o teto e se lembrou dos momentos difíceis, sozinho em um asilo de Barbacena. Seus devaneios foram interrompidos por uma mulher que lhe perguntou “vai pó?”. Pensou e respondeu “não, me livrei do vício”. A mulher sorriu e disse “Eu sou maquiadora”. “Olha bem pra minha cara”. A maquiadora olhou bem o rosto de Zé Gotinha e concluiu: ele não precisava de pó.

Zé Gotinha estava no camarim, se preparando para o seu retorno. Estava ausente há cinco anos. Sua última aparição pública foi quando ele desceu de rapel o mirante do parque mãe Bonifácia. Foi um desastre. Sua outrora unanimidade com as crianças desmanchou-se por entre as mãos que seguravam a corda. Metade dos lá presentes fugiu, gritando de medo daquela figura pálida. A outra metade resolveu cutucar o toba de Zé.

Os jornais não estamparam o seu fracasso. O que significa um fracasso ainda maior, não ter seu fracasso exposto. Fracassou enquanto fracassado. Os convites para participar de eventos foram desaparecendo. Sua figura sumiu das campanhas. A única coisa para a qual foi convidado, foi um filme pornô da Brasileirinhas. Sua história já foi relatada aqui antes.

Ele já não tinha mais perspectiva para nada. Até que seu telefone tocou. Era um convite para participar de uma vacinação no bairro do Tijucal, em Cuiabá. A mesma cidade que assistiu seu fracasso. O convite ergueu seu ego. Era uma oportunidade única de voltar à mídia e de apagar as péssimas lembranças deixadas na capital matogrossense. E assim, José Gota Júnior veio para Cuiabá. Sua missão seria animar as crianças e pular numa cama elástica. Nada demais, para quem um dia já foi domador de leões.

Estava agora muito perto do momento de consagração. Arrumou a postura e estava pronto para entrar. Sentia aquele frio na barriga, como se fosse a primeira aparição de sua vida. O microfone anunciou sua entrada. Zé Gotinha respirou fundo, mas tão fundo, que até o último espaço de seu pulmão foi preenchido pelo ar. Saiu pela porta e as crianças o olhavam, espantadas. Estavam diante de uma lenda. Comentavam entre si, perguntavam aos seus pais. Ele era o centro das atenções.

Zé Gotinha passou pelos fotógrafos, sorriu para as crianças e foi rumo à cama elástica. Disse que escolheria uma criança para pular com ele. Foram à loucura. Dezenas de crianças pediam aos berros para serem escolhidas. Queriam de qualquer maneira a oportunidade de pular ao lado de uma lenda. Queriam ter para sempre essa memória em suas retinas. Com toda a sua bondade, Gotinha acabou por escolher quatro. Os organizadores do evento o alertaram que ele devia escolher no máximo duas. Mas Zé estava eufórico, ofuscado pelos refletores ele não mais pensava. Levou quatro mesmo.

As crianças subiram na cama elástica, sob o olhar preocupado dos seguranças. Zé se preparou para subir. Subiu cada degrau, como se fosse o último. Como se fosse Neil Armstrong. Era um pequeno degrau para o homem, mas um grande degrau para a vida. O filme de sua vida se passava diante dos seus olhos. Subiu na cama elástica. Equilibrou-se e preparou-se para o pulo. Seus olhos já estavam marejados por conta da emoção. Foi impulsionado para cima.

Pulou para a eternidade. Os flashs das câmeras disparavam incessantemente. Zé levitou. Foi um breve segundo menos de um segundo no ar. Ele estava no topo do mundo, se arrepiou, sentiu o doce cheiro da glória em suas narinas, o doce gosto do sucesso em seus lábios. Os traumas estavam superados, ele voltará a ser o Zé, o Grande Zé Gotinha das campanhas televisivas, das camisetas, dos bonecos. Os bons tempos voltaram. Foi o mais longo segundo de sua vida. Segundo que durou até o momento da queda. Amarga queda. O excesso de crianças e o seu excesso de peso foram demais para a cama elástica que desabou. As crianças choravam e Zé se sentiu arrasado. O segundo mais glorioso de sua vida terminou no chão. Seus sonhos se quebraram, junto à cama elástica.

Comentários

Gressana disse…
Haheaheahehaehaheahehaeha!!!!
E eu achando que ia ser uma volta gloriosa, que nem a dos Benga Boys!
Foi um desastre poético.
J. Tomaz disse…
Tadinho do Zé Gotinha...
ele só se fode...

pena....
Thiago Borges disse…
Q triste caso, é uma pena ver um herói acabar dessa forma.
Unknown disse…
ahahahahaahhaahh

Ó Guilherme, escrevendo igual jornalista literário. Eu gostava do Zé Gotinha, era sempre um grande alívio saber que não tinha agulha daquela vez. Fracassar em fracassar é de um episódio da Família Adams. Foi inspirado?
Leidi Montfort disse…
olha Guilherme, fui às lágrimas com esse texto. Você foi de uma sensibilidade impressionante.
E o que mais me tocou foi a proximidade do fato. Puxa, aqui tão pertinho de casa. O Tijucal é mesmo um lugar sagrado.