Gestão de Imagem dos Falecidos

A morte é implacável. Principalmente quando é provocada por um acidente, ela representa uma interrupção abrupta de um ciclo. De uma hora para a outra, quem ali estava já não está mais, e os que ficam tentam tatear um novo mundo imposto pela ausência.

Para o morto não sobra nada. Aliás, não sobra nem a narrativa. Por mais que ele tenha criado um forte discurso, uma forte linha de pensamento, projetado um legado em vida, nada garante que isso seja respeitado. Não há imunidade para a má interpretação póstuma e o morto não poderá nem aparecer em cadeia pública de rádio e televisão para desmentir boatos, ou esclarecer alguns pontos. Nem uma nota pública, nem um Zap para uma jornalista da GloboNews.

Escritores, pensadores, filósofos e afins costumam a deixar uma vasta obra literária que pode servir de consulta e até mesmo para tirar dúvidas sobre os seus pensamentos. Mas nem isso garante imunidade à narrativa póstuma. Alguém pode a qualquer momento fazer uma afirmação sobre sua vida e gerar um enorme ruído do qual você não poderá se defender.

Dois casos recentes ajudam a mostrar como essa discussão é profunda e como, talvez, no atual mundo hiperconectado, as pessoas terão que deixar em seus testamentos descrições bem exatas de como querem que seu legado seja defendido no pós-morte.

Dias atrás, a Volkswagen atropelou a internet ao recriar uma Elis Regina androide por meio de Inteligência Artificial (vulga IA), para que esta criação cantasse o clássico "Como Nossos Pais" dirigindo uma antiga Kombi na praia, lado-a-lado com sua filha Maria Rita (está criada por meio de movimentos ritmados e sequenciais naturais), ao volante de uma nova Kombi Moderna & Elétrica com nome estranho. Um dueto curioso.
A minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos, dirigindo volkswagens


A internet ainda chorava com seu gosto um tanto quanto mórbido pela ideia da vida eterna provocada pela IA (tem um episódio de Black Mirror sobre isso) quando começaram a discutir a questão essencial: o que Elis Regina acharia disso? Ela gostaria de que sua imagem fosse explorada 40 e poucos anos após sua morte para vender carro? Ela gostaria que seu corpo e sua voz fossem recriadas artificialmente, só que não para abraçar seu irmão e beijar sua menina, mas sim para vender nostalgia em forma de automóvel?

Eis uma preocupação um tanto quanto intensa, mas que sequer passava pela cabeça de Elis nos idos de 1982. (Até porque, quem há 40 anos atrás poderia imaginar que seus filhos, então crianças, autorizariam que você fosse recriada por computadores para vender carros).

Já ontem mesmo, a internet foi arrebatada por um exposed do viúvo do Twitter. Um cidadão que no começo do ano começou a fazer uma série de posts extremamente melancólicos após perder sua esposa em situação trágica (uma doença autoimune que provocou embolia pulmonar). Foi um dos casos mais comoventes do ano, levando anônimos e famosos a se solidarizarem e em algum lugar do planeta, alguém já deve ter pensado em um filme baseado nessa história.

Pois bem, uma mulher surgiu do nada para falar que tinha um caso com o viúvo, enquanto a esposa ainda era viva, que vídeos e histórias que ele postou afirmando que eram lembranças da falecida, eram, na verdade, enviados para a amante. Todo o storytelling foi perdido em um piscar de olhos.

Pois bem. Entre julgamentos morais, até a morta foi acusada de ter um amante. A maioria dos envolvidos ainda não se pronunciou sobre a repercussão do caso, mas na verdade, a única que ainda precisaria se pronunciar é justamente quem não pode. Que grande agonia, pensar que, após morrer, você pode se transformar em um assunto viral, em um meme do Twiter e que não poderá ter nenhum controle sobre o assunto. Viveu uma vida normal, morreu e se transformou em corna póstuma.

Como resolver isso? Existe algum advogado especializado em direitos póstumos? "Meu cliente, certamente, rejeitaria essa acusação".

Isso me faz lembrar um assunto que sempre me agoniou: as promessas feitas por pessoas que já morreram. Ou, pelo menos, as promessas que pessoas que já morreram teriam feito, só que ninguém tem exatamente como comprovar porque é impossível perguntar ao falecido se ele realmente falou aquilo.

Recentemente, em meio a um revival de sua carreira, a apresentadora Xuxa Meneghel revelou que iria procurar seu ex-namorado Ayrton Senna, mas que ele morreu antes que isso fosse possível. O compositor Michael Sullivan foi além e disse que Ayrton Senna pediu Xuxa em casamento exatamente no dia anterior ao acidente, marcaram de se casar assim que ele voltasse da Itália, só que ele acabou voltando já morto de lá.

Olha aí a história de filme. Mas, que parece um pouco inverossímil e, justamente, não é possível perguntar para o próprio Senna se isso é verdade. Aos que acreditam, é possível imaginar seu espírito gritando "é mentira, é mentira! Eu não fiz isso".

E haja história de gente que disse que queria reencontrar um parente, mudar de emprego, fazer uma cirurgia, mudar de casa, mas que infelizmente morreu poucas horas após expressar esse desejo. 

Por essas e outras que acredito que não tem jeito, em breve as empresas de Gestão de Imagens de Falecidos serão uma realidade.

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