Ethos Viário

O trânsito indiano talvez seja um dos maiores patrimônios daquele país. Quase uma atração turística. Sempre somos impactados pelas imagens que mostram pessoas andando em meio a uma grande quantidade de carros, motos, tuk-tuks, bicicletas, bicicletas com cargueiros carregando quantidades de carga certamente incompatíveis com o veículo e todos se movem de um lado para o outro, enquanto desviam de vacas que passeiam solenemente em meio a esse caos.



Dentro da nossa visão ocidental, não há a menor lógica em toda essa movimentação, em motos carregando oito pessoas, ônibus com pessoas no teto, cruzamentos enormes sem semáforo, carros cruzando em meio a outros em alta velocidade, tudo isso enquanto uma multidão atravessa a rua e bovinas exercem sua divindade.

Não é à toa que o trânsito indiano é considerado o mais violento do mundo e, quando olhamos essas imagens, temos a certeza de que é impossível que qualquer pessoa consiga chegar viva em casa ao final do dia. Brasileiros que vão à Índia costumam relatar que atravessar a rua é um horror e a melhor estratégia é colar em um indiano e tentar fazer os mesmos movimentos que ele, sobre a perspectiva de que ele deve saber o que está fazendo.

O que nós não entendemos é que cada lugar tem sua própria ética relacionada ao trânsito. O que para nós é a barbárie, para os nativos é apenas o mundo como eles o conhecem, os traços e características que os identificam como uma coletividade. Para os franceses, por exemplo, é absolutamente normal encarar a rotatória do Arco do Triunfo e suas 12 vias de acesso, mas se você colocar motoristas brasileiros lá, talvez não haja nenhum sobrevivente.


Esse aspecto cultural do trânsito não é observado apenas entre países diferentes. Não é preciso ir muito longe, cada cidade brasileira tem seus próprios ritos de trânsito, que podem pegar os forasteiros de surpresa. Isso porque as regras de trânsito são fluídas e é uma grande falha que Zygmunt Bauman não tenha se dedicado a escrever uma obra sobre o Trânsito Líquido.

Sim, há coisas imutáveis no Código de Trânsito, que deveriam ser obedecidas em todos os lugares. Regras relacionadas às sinalizações, limites de velocidade e etc. Todas são devidamente ensinadas e testadas no processo que leva a uma Carteira Nacional de Habilitação. Mas, a maneira como cada local as coloca em prática é variável. É a Regra 18 do futebol, sempre explicada por Arnaldo Cézar Coelho¹.

A questão da seta é uma das mais sensíveis de todas e cada local tem sua própria ética em relação ao assunto. Em São Paulo, por exemplo, as pessoas dão seta e os outros carros abrem o espaço para que o condutor mude de faixa. É normal que paulistas se envolvam em acidentes em outras freguesias ao descobrirem que essa prática não é nacional. (Em geral, moradores de São Paulo se assustam ao descobrir que suas práticas não são adotadas em todos os lugares do Brasil, apesar do enorme esforço midiático).

Já em Salvador as pessoas dão seta e mudam de pista sem se importar se os outros carros deram espaço ou não, como se a seta fosse uma proteção divina contra acidentes de trânsito e permitisse atravessar quatro faixas de uma pista de uma vez.

No Rio de Janeiro a situação é ainda mais grave, já que as pessoas mudam de pista sem dar seta e sem minimamente se importar se tem alguém do lado. Já em Cuiabá, por outro lado, a seta é um sinal para que os carros da outra pista andem mais rápido e impeçam o condutor de mudar de pista, sendo muitas vezes necessário sacar uma arma para conseguir alternar de faixa.

Em Maceió não existem regras claras quanto a preferencial em um cruzamento e um turista vê a morte em toda conversão. Por lá a faixa de pedestres costuma ser apenas uma maneira mais fácil de atingir o transeunte, enquanto que outras cidades nem se atrevem a instalá-las. Em Brasília, dizem, elas funcionam.

O Sinal Amarelo pode significar pare ou acelere. Buzinar em São Paulo é ato contínuo, no Rio de Janeiro obrigatório, em Cuiabá é declaração de guerra. Em Florianópolis é normal abaixar o vidro para xingar uma pessoa que agiu contra seus princípios. Ciclistas são inimigos comuns em qualquer lugar.

As mudanças são perceptíveis às vezes em cidades vizinhas. Basta atravessar uma ponte de Cuiabá para Várzea Grande para observar pessoas trafegando pela contramão e eventualmente fazendo retornos em locais inimagináveis.
Imagina o indiano vendo isso e pensando "porra, é só botar um tuktuk"


É por isso, que eu estou entre os cidadãos que têm fobia de dirigir em cidades diferentes da minha. A locação de um automóvel nunca faz parte do meu planejamento de viagem. Por mais que o Brasil seja planejado para automóveis, por vezes um meio exclusivo para praticar o turismo e ter acesso a praias remotas e cidades históricas. Por mais que as ruas largas, viadutos, trincheiras, túneis e diversas soluções de engenharia estejam lá para garantir que pessoas possam ficar tranquilamente presas em congestionamentos intermináveis escutando podcasts e contemplando o vazio da existência humana. Por mais que as propagandas automotivas vendam o conceito de liberdade, com os proprietários de veículos dirigindo por ruas vazias rumos a destinos inexplorados e superando obstáculos diante do olhar incrédulo de poucos pedestres perdidos.

Porque não é fácil se adaptar a outra cultura.

¹ O Futebol é um jogo que tem apenas 17 regras: não matarás, não roubarás, não cobiçarás a mulher do próximo, não pegarás a bola com a mão dentro da grande área e outras 13. Arnaldo Cézar Coelho sempre falou que a 18ª e não escrita regra versa, no campo das ideias, sobre o bom senso de suas aplicações.

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