Rígidos Protocolos Sanitários

O resultado do Exame RT/PCR ainda não havia sido publicado, mas, a partir do momento em que o olfato desapareceu no sexto dia de sintomas, não restava nenhuma dúvida. Um amigo médico lhe disse que a perda do olfato era melhor do que qualquer exame para diagnosticar a Covid-19. Isso significa que era questão de tempo para que seu caso aparecesse naquela lista incontável publicada todo dia na abertura do Jornal Nacional.

A presença do enigmático novo coronavírus em seu organismo era assustadora. Os sintomas não eram dos mais agressivos. Garganta ruim, moleza, uma dor de cabeça que parece gerada fora do seu organismo e a falta de olfato e paladar. Não era tão ruim diante de pessoas que relatavam falta de ar e diarreia. Mas não chegava a ser tranquilizante, uma vez que parece que o destino já escolheu quem vai morrer ou quem vai viver ao coronavírus. Tudo parecia bem até então, mas nada garante que em dois dias seu quadro não iria sair do controle e daí para ir parar em uma UTI onde há chance de ser entubado é de 50% e a de morrer é de 33%, enfim.

Junto com os sintomas vem a culpa. O medo de ter contaminado alguém que vá morrer. E a dúvida: onde é que seu corpo foi contaminado? Desde que a situação se agravou, ele vinha tomando os cuidados na medida do possível e só saia de casa para ir no supermercado ou na farmácia. Certo que ele nem toma nenhum remédio periódico e desde março do ano passado vai na farmácia quase todo dia para comprar um sabonete, ou coisa assim, mas quase não tem ninguém por lá.

Também saiu de casa para trabalhar, mas isso era inevitável. O ambiente de trabalho é relativamente seguro, é possível manter um certo distanciamento, ele usa máscara o tempo todo, só tira para beber água e quando vai fumar e eventualmente quando vai fofocar alguma coisa com alguém, uma conversa que merece discrição e cujo volume de voz atenuado necessita a retirada da máscara para possibilitar a leitura labial.


Fora isso, nenhuma situação de grande risco. Tirando o Happy Hour de toda sexta-feira com os colegas de trabalho, mas eles são um grupo pequeno e todos estão se cuidando, é um jogo rápido, duas horinhas tomando uma cervejinha, o bar que eles vão toma todas as medidas de segurança, tem álcool em gel, afere a temperatura de todo mundo no pulso, tudo na maior segurança, na volta para casa é só pegar um Uber, todos usando máscaras, vidros abertos – às vezes está muito quente e o ar-condicionado é ligado, mas não faz muita diferença, e enfim, todo mundo seguro.

Ok, existiu uma pequena escapada da quarentena dia desses, quando um amigo foi comemorar o aniversário em uma boate, mas foi um dia só, todos mantiveram o distanciamento o tanto quanto foi possível, a casa seguia todas as medidas sanitárias recomendadas, pistolinha no pulso, álcool em gel na porta, limite de 200 pessoas, quase todo mundo de máscara, nem foi tanto tempo assim, quatro horas da manhã ele já estava em casa, enfim, é preciso dar uma relaxada porque essa pressão da quarentena muito rígida deixa todo mundo meio louco.

O aniversário do tio Walter foi uns 15 dias atrás, mas, também foi tranquilo, a família inteira está se cuidando e é pequena. Coisa de 50 pessoas no churrasco, a tia Soraya estava meio gripada, mas ela disse que era só a alergia dela, essa época de chuva, a umidade ataca a rinite, essas coisas. Bem, foi preciso ir no shopping para comprar o presente do tio Walter, sábado, estava um pouco cheio, mas tinha a pistolinha no pulso, o álcool em gel, aqueles adesivos no chão demarcando a posição. Foi jogo rápido, só escolher uma camisa pro tio e aproveitar para comprar um sapato novo, afinal, com essa quarentena ele quase não tem saído de casa, deve ter sido só a quarta vez no ano em que ele foi no shopping, tinha que aproveitar a oportunidade. Claro, uma casquinha do Bobs, que ninguém é de ferro, mas ele andou bem rápido enquanto comia o sorvete sem a máscara.

Bem, a essa altura já é possível descartar aquela viagem de fim de ano como causa da doença. Mais pela questão temporal também, porque, enfim, foi uma viagem segura. Duas horinhas no avião até São Paulo, duas horas no aeroporto, mais uma meia hora até o Rio de Janeiro, mesma coisa na volta. Parece que o vírus não circula direito dentro do avião, por conta da pressão. Dá até para relaxar e dar uma respirada sem máscara. No Rio de Janeiro foi tudo muito tranquilo também, tudo bem ventilado, a praia estava bem organizada, distanciamento social, tudo quanto é lugar com pistolinha no pulso, o baile funk teve um pouco mais de contato, mas era só gente jovem, chance de contaminação muito menor. Era certeza que não ia dar nada.

Restam poucas situações capazes de explicar o contágio. A academia diária não chega a ser uma delas porque lá todo mundo é saudável, impossível que alguém com esse vírus conseguisse praticar qualquer atividade física.

Bem, na verdade há uma hipótese mais forte para o contágio, mas essa é mais difícil de aceitar e até de falar sobre. As surubas semanais. Ali no primeiro mês de quarentena até que foi possível evitar, para preservar a saúde e tal. Mas ainda mais importante era a saúde mental e sem a suruba semanal ficava muito difícil. O assunto é cercado de tabu, o que impede que ele fale disso para o médico, para família, ou para quem quer que queira saber como é que ele, que se cuida tanto, pegou esse vírus.

Claro, essa é uma hipótese, mas não significa que tenha sido isso. O seu grupo de orgias tem se cuidado plenamente e, assim como ele, mantido um rígido protocolo de distanciamento social. Todo mundo sabe que não é pra ir se tiver qualquer sintoma. O grupo também é menor, as surubas tem no máximo 20 pessoas, não chega a ser aquela loucura de mais de 50 de antigamente. Certo que dia desses ele passou por um momento tenso quando alguém perdeu o controle e ejaculou na sua cara, mas ele não engoliu, limpou o rosto rapidamente e higienizou tudo com álcool 70.

Esse vírus é traiçoeiro mesmo. Pega qualquer um sem distinção, mesmo quem toma os mais estritos cuidados dentro dos mais rígidos protocolos sanitários.

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