O Fim da Pandemia


A insatisfação era tão grande que era possível visualizá-la sobre a cabeça das pessoas e até mesmo cortá-la com uma faca bem afiada e passá-la sobre o pão caseiro de todo dia. A pandemia já durava alguns meses, os bares estavam fechados, as lojas fechadas, as ruas vazias, os parques e praias abandonados, as crianças em casa. As roupas de sair já cheiravam a guardado e os sapatos a mofo. A vida havia virado um grande dia da Marmota, com reuniões de trabalho por vídeo, ligações de vídeo com amigos com quem você nem falava com tanta frequência assim, pedidos do iFood e um estranho sentimento de que era preciso ser produtivo. Todo mundo estava aprendendo um idioma novo, aprendendo a fazer crochê, a plantar sua própria horta horizontal. Grandes artistas produziram obras-primas em períodos de isolamento. Isaac Newton revolucionou a física enquanto se resguardava de um surto de peste negra. Não escrever um romance durante a pandemia seria um sinal inequívoco de fracasso.

Os jornais bombardeavam notícias tristes diariamente. Ficávamos sabendo das pessoas com histórias de vida singelas bruscamente interrompidas após semanas de internação em um hospital impessoal, com um aparelho de respiração introduzido garganta abaixo. Mortes solitárias com enterros rápidos e sem a devida despedida. Os caminhões do Exército carregando corpos na Lombardia e a qualquer dia sua cidade viraria a Lombardia. Era para ser Manaus, Fortaleza, o Rio de Janeiro, mesmo Cuiabá.

Ao mesmo tempo, emissários da normalidade emitiam sinais conflitantes. O dono do Madero dizia que esse isolamento era um absurdo. O presidente aparecia na TV para falar que aquilo tudo era besteira. Sempre aparecia algum maluco falando que era só tomar cloroquina, ivermectina, azitromicina, ou melão de são caetano e tudo iria ficar bem.

Todo mundo estava cada vez mais cansando em seus apartamentos, esperando a morte chegar e talvez ela não chegasse. Os caminhões do exército não precisaram nem serem abastecidos e esse era o combustível para os emissários da normalidade, que se multiplicavam e questionavam quanto tempo mais iríamos viver assim? Todo dia o Átila aparecia reforçando que não havia motivo para ficar otimista, que isso não iria acabar tão cedo.

Havia também, as pessoas já recuperadas da Covid. Mesmo que algumas tivessem sequelas e sentissem gosto de alho queimado em todas as comidas ou que vomitassem com o cheiro do café ou que permanecessem com fadiga e tremores ou com outras condições que normalmente resultariam em uma bateria de exames e investigação médica, pouco importava. Essas pessoas agora carregavam anticorpos, ou linfócitos-T, ou qualquer coisa assim, seus corpos eram máquinas atualizadas e preparadas para destruir o novo cada vez mais velho coronavírus. Instruídas pela autoridade moral da sobrevivência, não havia motivos para que elas ficassem trancadas em casa, sendo que existia um mundo de possibilidades a ser explorado, passeios de barco a serem feitos, lojas de shopping a serem passeadas, lustres brilhantes e caros a serem comprados, aglomerações a serem organizadas.

Todos os estabelecimentos comerciais foram liberados, claro que seguindo as mais restritas medidas previstas nos mais rigorosos protocolos sanitários. Distanciamento, uso de máscaras, álcool em gel para dar, vender e se besuntar. Não que alguém vá realmente fiscalizar. Não que não dê para colocar a máscara no queixo, mas há toda uma mise-en-scène, funcionários ficam na porta dos estabelecimentos borrifando álcool nas mãos, fiscalizando as máscaras, dando toda aquela sensação de que tudo vai muito bem.

Então chega aquele momento em que o inconsciente coletivo pensa: estamos todos trabalhando, saindo de casa cedo e voltando tarde, comendo em refeitórios apertados, enfrentando transporte público abarrotado, tendo que ir em cartórios, em supermercado, na loja para comprar uma resistência de chuveiro, enfim, lidando com todos os deveres burocráticos da vida adulta, então porque é que não podemos fazer uma festa? É só manter os protocolos de segurança e distanciamento, álcool, máscaras que tudo vai ficar bem. Aqui e ali a música voltou a tocar baixinho, o som de conversa alta e alcoolizada voltou a fazer o ambiente dos condomínios.

Os bares logo ficaram cheios, as praias ficaram cheias, as roupas de sair renasceram para uma nova vida. (Seguindo os mais estritos e rígidos protocolos sanitários). Mas, chega uma hora em que a encenação cansa. Quem é que queremos enganar com essas máscaras, borrifadores e pistolinhas de temperatura. O grito de independência ecoou de algum ponto nos arredores da Vieira Souto, ou da Vila Madalena e logo as ruas estavam cheias e cada um que cuide do seu. O povo decidiu que era livre para sair de casa e pagar 40 reais em um hamburguer e que não mediria esforços para mantar a saúde financeira do Junior Durski.

Quer usar máscara? Usa. Mas não venha me cobrar. Leve o seu próprio álcool em gel porque o problema é seu. Cada um cuida da sua vida. Toma ivermectina para prevenir. Logo o isolamento social passou a ser visto como um hábito exótico de pessoas excêntricas, uma medida radical de pessoas intransigentes e indispostas a colaborar para a felicidade coletiva. Feliz, em algum ponto um coach falava que era tudo uma questão de mindset. Se pararmos de pensarmos como uma mentalidade pandêmica, a pandemia deixa de assistir.

O dono do mercado então resolve que não precisa mais ter ninguém borrifando álcool na mão de ninguém e que todos já podem ficar em filas e usar o mesmo pegador de pão, desde que, é claro, mantenham a distância de 1,5m, usem máscaras e tenham se banhado em álcool em gel antes de entrar no estabelecimento. 

Como os caminhões carregando corpos insistiam em não chegar, logo as pessoas perderam e vergonha de expor suas aglomerações nas redes sociais. Até então clandestinos e mantidos sob segredo e anonimato, os encontros sociais passaram a ser expostos em storys ostensivos e opressivos. Repentinamente todo mundo que até então estava em um estoico isolamento drauziovareliano passou a ser visto na praia, em bares, em rodas de violão, bebendo cerveja e mantendo o protocolo sanitário necessário, que a essa altura corresponde apenas a certeza de que ninguém está doente e que isso aqui não vai dar em nada não. 

Como ninguém mais via problema em nada as prefeituras passaram a autorizar as festas, os cinemas e até mesmo os berçários, desde que é claro, oficialmente, todos os protocolos de segurança sejam seguidos com um rigor espartano. Bebês de máscara e sendo mantidos a 1,5m de distância um dos outros, sem morderem os mesmos objetos, com os brinquedos sendo higienizados com Lisoform a cada manuseio infantil.

Gabriela Pugliesi, outrora símbolo da negligência da elite brasileira, foi resgatada de seu cancelamento e transformada em mártir da normalidade. Aqui e acolá o foda-se a vida transformou-se no mantra nacional, independentemente da quantidade de anticorpos, antígenos, linfócitos ou qualquer outra coisa que possa estar no seu sangue aniquilando coronavírus. Melhor morrer do que viver como estávamos vivendo. Mais vale a pena correr o risco de ficar dois meses internado sob uso de sedativos enquanto seu pulmão encharcado de secreção é inflado por um respirador mecânico e seus órgãos mantidos em funcionamento por cateteres, até eles pararem de funcionar um por um e você agonizar até a morte para depois ser solitariamente enterrado em um cova rasa. Melhor correr esse risco do que viver o verdadeiro horror que é permanecer privado da possibilidade de ir até o restaurante do Junior Madero e ficar por horas esperando um garçom que te ofereça a conta de 112 reais por dois hamburgueres com chope, o pavor de não poder cantar um clássico do Bruno e Marrone com os amigos e de tomar uma Brahma Litrão no canteiro central do seu bairro. Quem morrer pelo menos morre feliz por não ter que ficar aprisionado na aflição do isolamento social.

E foi assim que a pandemia acabou.

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