Reagente Positivo

Em abril desse ano a sociedade brasileira pode realizar um antigo sonho: cancelar Gabriela Pugliesi. Em meio a uma pandemia, a influencer fitness resolveu documentar uma confraternização de médio porte com amigos e amigas em sua residência paulistana. A condenável atitude foi rechaçada pelos mais diversos estratos sociais e Pugliese começou a perder milhares de seguidores no Instagram, que pode ser considerado o seu escritório de trabalho.

O desespero a levou a suspender sua conta, mas as imagens da pilha de hambúrgueres, dos diversos drinks e farra generalizada ficaram eternamente disponíveis na internet. Entre todas as imagens, no entanto, a que mais chamou a atenção foi uma onde, Pugliese ergue um drink, olha para a câmera e faz um brinde sui generis: “foda-se a vidaaaaa” ela diz, com a entonação de um grito, mas volume e modulação de uma fala normal.

Passados alguns meses, é possível dizer que fomos todos muito injustos com Pugliese. Bem, existem centenas de motivos para que a achemos uma pessoa desprezível, detestável, com uma voz irritante, expondo sem necessidade sua vida e ostentando uma estilo de vida inalcançável para a maioria dos humanos mortais e aparentemente incompatível com suas habilidades pessoais. Execrar publicamente GaPu é o exercício de uma demanda reprimida e fazer isso porque ela resolveu ostentar uma festa em meio a uma pandemia chega a ser a democracia em sua plenitude.

Mas, volto a insistir que foi uma grande injustiça. O momento foi errado, estávamos em abril, pouca gente ainda tinha morrido mas estávamos todos consternados com o que aconteceu na Itália e depois na Espanha (iria ocorrer na França e em Nova York, mas a essa altura já nos importávamos menos, o que leva a crer que o que realmente nos comoveu foram as pessoas cantando Bella Ciao na janela e, indo além, mostra que o nosso medo talvez não fosse morrer ou perder uma pessoa querida para a doença, nosso verdadeiro medo era ficar trancado em casa com vizinhos cantando Bella Ciao na janela, possivelmente no ritmo de funk).

Estamos fazendo tudo  dentro dos mais rígidos  protocolos de segurança

Precisamos lembrar que Pugliese foi uma pioneira do coronavírus. Uma das primeiras brasileiras a ser contaminada em solo nacional e estrela principal de um evento que ajudou a disseminar o vírus no país: o casamento de sua irmã. Pugliese passou maus bocados junto com outra dezena de famosos do Instagram que estavam presentes no casório, se recuperou e resolveu curtir a vida. Sim, indefensável que alguém grite foda-se a vida, bêbada, no meio de uma festa nos tempos em que vivemos.

Só que, contaminada ainda em março, no fim de abril Pugliesi já estava há algum tempo recuperada. Vivendo sua vida Good Vibes e confiante de que já havia superado a pior pandemia de sua geração. Resolveu comemorar sua situação privilegiada chamando um monte de amigos para mandar a vida se foder.

Deplorável? Deplorável. Só que agora, no começo de agosto, milhões de brasileiros já passaram pelo coronavírus e o superaram. Se sentem imunes à doença, ostentam seus anticorpos, antígenos, linfócitos ou o que quer que seja que os protegem do mal que assola a humanidade. E acabam por despertar a Pugliese que habita dentro de cada um.

Os Recuperados já realizam festas particulares onde só quem já teve um exame RT-PCR reagente consegue entrar. Celebram sua vida sem se importa com a miséria alheia. Fazem compras, andam de barco, viajam por aí. O pior para eles já passou e eles podem tomar seus bons drinks, pedir hambúrgueres de 180g puro angus com cheddar e cebola caramelizada e talvez não cheguem a externar, mas em algum canto interno da sua mente cantarolam “foda-se a vida”.

Governos chegaram a pensar em criar passaportes de imunidade que garantiriam aos já contaminados e curados da Covid a possibilidade de circular livremente por aí. A ideia foi abominada por ter um viés eugenista e de alguma forma lembra aquele filme de ficção científica Gattaca (que como todo filme de ficção científica caminha no limiar entre a genialidade e a bizarrice). Só que a Espanha já voltou a discutir o assunto e não tenho dúvida que os líderes da nova extrema-direita populista cheguem a salivar com a ideia, com destaque para o nosso presidente.
Ao que tudo indica, a nova cartilha de desculpas exige que você esteja sentado no chão


Passados alguns meses, Pugliese já voltou à sua rede social favorita. Gravou um longo depoimento onde mostrava uma aparência planejadamente vulnerável para amontoar uma série de clichês sobre arrependimento, auto-conhecimento, oportunidades e esse grande discurso coach que faz a cabeça da garotada (e alguma velharada também). Por lá e por aqui surgem debates sobre a justiça do que foi feito com ela. Ninguém mais a deixou de seguir e sua rotina voltou ao normal, fazendo o bingo completo de postanges no instagram (foto com o namorado, foto com o por do sol, foto de cachorro, foto fazendo exercício físico, do prato de comida). É capaz que no futuro ela seja tratada como uma case de sucesso de recuperação da própria imagem.

Porque Pugliese apenas antecipou uma tendência, nunca ela esteve tão a frente do seu tempo. Ela não teve medo de expor que estava livre da morte e que as restrições pouco importavam para ela. Foi martirizada, mas não em vão: a partir de agora, todos que queiram fazer um brinde para a vida fodida podem fazer sem se preocupar em sumir das redes sociais e gravar um vídeo de vulneráveis desculpas. Seu grito pálido de “foda-se a vida” nada mais é do que um novo grito de independência, um “independência ou morte” contextualizado para a nossa geração.

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