Cenas da Pandemia: Pão Caseiro

Houve um momento ali no começo da pandemia em que as pessoas realmente estiveram engajadas em praticar o isolamento social e tentar de alguma forma seguir as orientações científicas para preservar a vida alheia. Um tempo que já parece distante, quando as falas do presidente Bolsonaro eram rechaçadas como absurdas e uns pouco lunáticos contestavam a existência do coronavírus. Época em que as pessoas se empenhavam em arranjar atividades para passar o tempo em casa, em que lives eram um momento de escape coletivo da realidade, período em que pipocavam anúncios de cursos online sobre poda de árvores, tricô, ioga e sexo tântrico e parecia ser obrigatório aprender uma nova habilidade manual ou intelectual durante o confinamento. Época distante, quando todo mundo fazia o seu pão caseiro.



A panificação é uma das técnicas culinárias há mais tempo dominada pelo homem, uma forma de processar os cereais que nosso estômago não consegue digerir. Existem evidências de que o homem de 30 mil anos atrás já fazia pão. Os egípcios, sempre eles, já faziam pão da mesma forma que nós fazemos e os utilizavam como forma de pagamento dos trabalhadores das pirâmides. Caso a sociedade egípcia tivesse sido mais influente que a Romana na civilização ocidental, hoje receberíamos algo chamado como “Pãolário” em vez de “Salário”, o que renderia ótimos trocadilhos e muita diversão no ambiente corporativo.

No entanto, assim como tantas outras atividades contemporâneas, a panificação profissional ficou restrita a um pequeno grupo de especialistas, conhecidos como padeiros, que vendem o produto da sua mais-valia em padarias, supermercados, confeitarias, carros estacionados próximos a quebra-molas, mercearias e até mesmo em açougues, como é o caso de um estabelecimento no meu bairro. Algumas pessoas praticam a panificação de forma amadora e esporádica e existem máquinas que fabricam pão em casa, mas geralmente o resultado é insatisfatório e não compensatório, sendo muito mais prático se dirigir até um supermercado e fazer seu pedido.

A quarentena inicial acabou por ser uma ótima oportunidade para que as pessoas se voltassem a essa arte milenar. Não há um grande mistério na fabricação do pão. É preciso farinha, fermento, sal, açúcar, alguma gordura, em alguns casos ovos, água morna e paciência para sovar a massa até atingir o ponto. A experiência pode dar muito certo ou muito errado, o pão pode ficar parecendo uma borracha ou uma pedra, mas com o tempo é possível adquirir novas habilidades e fabricar pão de batata, de cenoura, de aveia, de lichia, experimentar os mistérios da baixa fermentação, ou da fermentação natural, deixar o pão tomando sereno durante a madrugada, pendurá-lo em uma corda em uma árvore e atirar sal grosso nele, enfim, dar asas à sua imaginação e, quem sabe, abrir o seu próprio negócio e passar a vender pão pelo Instagram, pães empacotados em belas embalagens com ainda mais belas mensagens de agradecimento ao consumidor, escritas com uma letra bem bonita.

Mas, esse texto não é um guia sobre o auto-conhecimento panificador e o caminho para o empreendedorismo do pão nosso de cada dia. Uma rápida busca no Google revelará que todos os grandes portais de mídia e/ou culinária postaram textos, vídeos, tutoriais sobre como fazer seu próprio pão de forma, pão francês, pão de sêmola ou de catuaba. Tudo pode virar pão, vá no Google e descubra. Certamente já existem podcasts de duas horas de duração em que o apresentador faz um pão e te ensina a receita enquanto faz maravilhosas confabulações sobre os aspectos contemporâneos da vida.

Quando esse texto foi concebido, junto com outros da série “Cenas da Pandemia”, minha perspectiva era analisar elementos que saturaram o nosso cotidiano confinado, como as lives, as reprises futebolísticas e o TikTok. Mas o tempo passou e o confinamento chegou ao fim por cansaço, saco cheio e porque as pessoas que dominam o poder ou já pegaram a doença e estão imunes ou já perderam dinheiro demais com essa história. A fabricação do pão caseiro é apenas uma lembrança de dias em que tudo parecia muito difícil, mas que juntos iríamos superar tudo isso. Dias em que víamos, story após story, as mais diversas pessoas se rendendo às maravilhas da panificação amadora e pensávamos que talvez, quando tudo isso acabasse, poderíamos fazer um grande campeonato mundial de pão caseiro.

Mas agora, no fim de agosto, o tempo mostrou que o presidente Bolsonaro não foi eleito por acaso, ele é um resultado do que somos enquanto país. A vida é que segue e quem morrer, morreu, fazer o quê. Fomos panificadores, mas não somos coveiros. Alguns poucos lunáticos ainda insistem em tentar manter o isolamento social, enquanto a vida segue rumo ao seu novo normal e, pouco a pouco, as pessoas perdem o pudor de mostrarem que estão reunidas, aglomeradas, sem máscara, tocando em frente, andando rápido, porque continuam com pressa. 

Foi tudo apenas um sonho


Houve um momento em que NÃO FABRICAR seu próprio pão já era um ato de resistência. Hoje, é apenas a vida como ela é.

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