Cenas da Pandemia: Sonhos de Consumo

A Classe Média é um extrato social que vive entre o sonho e a realidade. Seus integrantes estão financeiramente mais próximos da classe baixa, mas tentam se comportar como se fossem os verdadeiros donos dos meios de produção. Para sustentar essa vida de aparências, à classe média sempre são oferecidos os chamados sonhos de consumo: produtos que podem diferenciar sua realidade medíocre da dos demais.


Durante muito tempo o principal sonho de consumo da classe média foi ter um carro próprio, que permitisse um escape de realidade maçante e amassada do transporte coletivo lotado. Um carro simples e usado, um sedã 0km com o maior porta-malas da categoria, uma SUV com câmbio automático e rodas de liga leve. Se o sonho se transforma em algo muito banal, logo o nível do sarrafo é elevado, mas se por outro lado, a realidade financeira faz com que ele se torne impossível de ser atingido, o mercado publicitário não hesitará em te garantir que algo mais simples proporcionará satisfação.

Assim é o sonho da casa própria. Um grande apartamento bem localizado, talvez não tem bem localizado assim, nem tão grande também. Um flat distante, um MRV na periferia, um cativeiro para chamar de seu. Uma casa no campo onde você possa plantar seus amigos¹, um apartamento na praia, na verdade um pouco longe da praia, de onde dê para chegar na praia em trinta minutos de viagem.

O sonho pode ser imaterial também. Uma viagem para Bariloche, Campos do Jordão ou Gramado. Para o Guarujá, uma praia no nordeste, no Caribe, na Costa Amalfitana, Trancoso, Maldivas, Riviera Francesa, Ibiza, um tour por lugares exóticos, alimentar coalas na Austrália ou leões sedados em um zoológico de Buenos Aires. Produtos instragramáveis desde antes de os pais do criador do Instagram se conhecerem.

São sonhos que valem um esforço, um financiamento, uma dívida com agiotas, deixar de se alimentar regularmente, tudo para garantir a ostentação de uma realidade imaginada. Quem é verdadeiramente rico viajou para Nova York em um jatinho próprio e é o dono do prédio onde está o apartamento que você alugou para a temporada de praia, mas para a classe média, só o fato de  frequentar os mesmos lugares já é suficiente para se sentir em outro patamar®.

Pois, quem diria que chegaríamos em 2020 e o sonho de consumo da classe média seria um oxímetro. No começo do ano, se alguém falasse em um oxímetro é capaz que você pensasse em um dispositivo de respiração submarina, ou um negócio com muitas válvulas, ponteiros e números complexos. Ninguém imaginaria que o oxímetro é só um pequeno aparelho que poderia ser um chaveiro, mas muito parecido com um minigrampeador, que em um primeiro momento se parece até com uma armadilha de alguém disposto a lesionar suas mãos. Enfim, esse dispositivo lança feixes de luz para medir seus batimentos cardíacos e a quantidade de oxigênio no seu sangue – o que vem a ser uma informação muito importante caso você esteja contaminado com o novo coronavírus, esse nosso velho conhecido.

Andamos pela cidade e vemos anúncios de oxímetros pendurados em postes que outrora anunciavam apenas chaveiros, lavas jatos e excursões para Caldas Novas e Porto Seguro. Farmácias anunciam que tem oxímetros. Em algum momento você já deve ter debatido com seu cônjuge sobre a possibilidade de investir em um oxímetro. Tanta procura pelo produto já aumentou seu valor e talvez já seja o momento de entrar em um consórcio, adiar outros sonhos para planejar a compra de um oxímetro e passar seu tempo livre confortavelmente instalado em seu sofá medindo o nível de oxigênio do seu sangue.

Quando tudo isso começou, o grande sonho de consumo era o álcool em gel. Pessoas migravam para os mercados, farmácias e demais estabelecimentos em buscas pelo produto. Famílias inteiras partiam em romaria atrás do novo santo graal. O álcool em gel desapareceu dos mercados e logo foram liberadas as vendas do álcool líquido 70º (há muito suspensas, devido à sua tendência de provocar combustão espontânea em seus usuários). Não sobrou nem o álcool 48º, que não serve para muita coisa além de provocar aquele conforto psicológico e a sensação de limpeza que só o cheiro do álcool dá.

Houve uma grande buscas por máscaras e elas desapareceram das farmácias. Por algum motivo, no começo da pandemia as pessoas se estapeavam por fardos de papel higiênico e era impossível encontrar alho, cebola e vinagre nos supermercados. Há uma corrida por remédios sem eficácia comprovada, mas que passaram a custar muito mais caro quando foram anunciados como a representação física do milagre.

Mas, logo todas as empresas do mundo começaram a fabricar álcool em gel e hoje é possível comprar quantidade suficiente para besuntar seu corpo no produto. Às máscaras começaram a ser fabricadas em casa e mesmo a cloroquina pode ser facilmente fabricada pelo exército, responsável por produzir uma quantidade inconsumível do remédio contra malária e artrite.

O oxímetro não. Não há tutoriais de como fabricá-lo em casa e não é qualquer laboratório de universidade que vai ter acesso ao conhecimento e produtos necessários para sua produção. Assim sendo, o momento é todo do oxímetro. O novo sonho de consumo da classe média.

(Enquanto isso, quem é rico não precisa comprar oxímetros porque se instala em hospitais nababescos, muito mais confortáveis do que qualquer hotel ou casa onde a classe média jamais vai conseguir se hospedar, tendo seu oxigênio e tantas outras variáveis de saúde sendo monitorados em tempo real por modernos aparelhos completamente inacessíveis e aparentemente surgidos de filmes da ficção científica).

¹Sempre achei esta composição de Zé Rodrix um convite à construção de covas clandestinas para o ocultamento de cadáveres de pessoas conhecidas.

Comentários