Cenas da Pandemia: Lives

Provavelmente ainda estávamos em abril quando foi amplamente noticiado no noticiário nacional que Gusttavo Lima faria uma grande live no youtube para garantir um pouco de diversão para o povo quarentenado. O evento praticamente pioneiro seria um grande teste para o formato e a possível abertura de uma nova frente de trabalho para os artistas nacionais. Profissionais que vivem basicamente da aglomeração alheia, esta categoria provavelmente seria uma das mais prejudicadas em tempos nos quais o encontro de quatro pessoas já configura crime, provavelmente formação de quadrilha.



A ideia poderia não ser exatamente original. Desde que o coronavírus começou a dizimar extensa camada da população, artistas de todo o mundo começaram a se apresentar em suas redes sociais para tentar levar algum alento aos seus fãs. Mas, eram apresentações despretensiosas, com apenas um celular preso em um ponto fixo filmando o artista ao seu piano ou violão e interagindo com os espectadores. 

(Os artistas, de alguma forma, reproduziam pela Web a ideia que milhares de sanfoneiros malucos tiveram ao redor do mundo, tocando em suas sacadas para diversão ou martírio da vizinhança. A vantagem da live é que você não precisava ser exposto à experiência sonora, caso não quisesse. O sanfoneiro da sacada era um cidadão bem invasivo e ainda foi incentivado por alguns editais que estimulavam a arte na janela.)

A live de Gusstavo Lima tinha grande produção. Mais de uma câmera, patrocínio de marca de cerveja, músicos de apoio e profissionais suficientes para questionar o isolamento social daquilo. O evento foi um sucesso de público, com milhares de espectadores que assistiram Gustavvo cantando e bebendo cerveja em seus sofás, poltronas, camas e até mesmo no chão, porque não. Pelos dias seguintes, vários artistas começaram a se arriscar em lives. O público se preparava para essas atrações. No Instagram era normal ver fotos de pessoas que se arrumaram, passaram maquiagem e perfume para sentar na frente do sofá e escutar seus artistas favoritos do dia.

Houve grande expectativa para a primeira live de Marília Mendonça, para a primeira de Jorge & Mateus e do Bruno & Marrone. A da Ivete Sangalo passou na Globo e mostrou sua casa sendo destruída lentamente pelas crianças. Alok também colocou o pen drive no Notebook e mostrou para o mundo que sua vida pode até estar ruim, mas jamais será pior do que a dos vizinhos dele naquele dia. Houve a primeira live do Lulu Santos. Do Skank. Do Milton Nascimento. Lives de artistas que você até duvida que realmente existam e que talvez tenham sido criados em laboratório apenas para faturar nessa onda, como é o caso daquele cidadão que montou em um cavalo e foi levado embora para todo sempre por ele, em uma releitura moderna do Cigano Igor.

As apresentações logo começaram a ficar temáticas, para conseguir manter a atenção do público. Diogo Nogueira cantou clássicos do samba enquanto preparava um estrogonofe. O Alok fritou hambúrguer. Ficou normal ver artistas cozinhando e cantando. Limpando a casa e cantando. Entrando em coma alcoólico e cantando. As lives passaram a ser apresentadas por ex-BBBs. Começou a ter live de gente lendo poesia, pintando quadros, fazendo o jantar. Um projeto amplo, geral e irrestrito de lives. Todo mundo passou a ter um talento para ser exibido ao vivo para os seus amigos no Instagram.

De repente até aquele seu conhecido que trabalha no RH de uma firma e que aparentemente não é nem um pouco interessante, tem inclusive dificuldade para entender qualquer colocação feita fora dos registros de ponto, aparece uma notificação dessa pessoa no seu Instagram dizendo que ela está ao vivo e durante um instante você até se pergunta o que será que ela está fazendo, será que está fazendo uma live conferindo planilhas e rubricando comprovantes? A dúvida persiste por alguns segundo, mas ela não chega a ser suficiente para entrar na live da pessoa e você permanece para sempre na ignorância, sem dar oportunidade para o talento alheio, sem saber que talvez aquela pessoa monótona da parte administrativa de uma empresa que você nem sabe o nome, mas convive virtualmente porque certa vez ela namorou uma prima do seu amigo, que talvez essa pessoa cante como um anjo caído dos céus, seja um enviado divino para enfrentar a monotonia dos tempos atuais, um artista complexo e desconhecido cujo talento não é devidamente explorado devido as dificuldades de convívio social fora de tabelas do Excel.

Pois bem, as lives se transformaram em algo tão rotineiro que as atrações diárias são maciçamente divulgadas nas redes sociais e principais sites do planeta. Além disso, ninguém mais se arruma para assistir as apresentações. Entre outras coisas, porque o Brasil já chegou no seu novo normal que consiste em: fazer tudo o que era feito antes, mas com um monte de gente morrendo enquanto isso.

No entanto, os shows são uma parte do antigo normal que ficaram de fora desta realidade atual. Até porque, eis um evento no qual é praticamente impossível praticar o distanciamento social. Enquanto a utilização de bolhas infláveis na plateia não se populariza, os promotores de eventos criaram uma nova modalidade de apresentação para nossa realidade pandêmica: os shows drive-in.

A princípio, a ideia é uma releitura de um hábito antigo, os cinemas drive-in: enormes estacionamentos nos quais as pessoas paravam seus carros para assistir filmes, de dentro do carro mesmo e eventualmente praticar sexo oral durante a exibição audiovisual, uma vez que o ingresso para o cinema era mais barato do que o momento no motel e provavelmente menos invasivo e mais fácil de arrumar uma desculpa: estava apenas vendo um filme. Os cinemas drive-in perderam espaço, uma vez que as pessoas perderam o constrangimento de ir no motel e nos últimos tempos apenas um resistia em Brasília, quase sempre às moscas.

Pois bem, o show drive-in parte do mesmo conceito. As pessoas estacionam seus carros em lugares amplos e podem assistir a um show do Jota Quest, no que talvez seja a mais perfeita tradução de distopia: pagar 500 reais para estacionar o carro dentro de um estádio de futebol e assistir Rogério Flausino cantando “dias melhores para sempre” ou “a macacada toda reunida” e o repertório mais constrangedor que uma banda conseguiu construir nos últimos 30 anos.

Mas, como não é todo maluco que se arrisca a pagar 500 reais para ver Rogério Flausino cantando que o amor é o calor que aquece a alma ou questionar que se isso não é amor, o que mais pode ser?, as lives continuam com tudo. Serão um eterno memorial destes dias remotos e insólitos, dessa fuga de linha temporal que vivemos de maneira trágica.

PS: O conceito de drive-in no estádio do Palmeiras se diversificou e também oferece a oportunidade de assistir filmes como “Velozes e Furiosos” de dentro do seu carro ou ainda assistir shows de Stand Up de ex-integrantes do CQC ou, ainda mais perturbador, pagar mil reais para assistir uma palestra de um coach que te ensina a ficar rico, sendo que provavelmente a melhor maneira de ficar rico é não gastar mil reais para assistir um coach de dentro do seu carro em um estádio de futebol no meio de uma pandemia que mata 500 mil pessoas no mundo.

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