A famosa figura do cidadao que acorda de um coma

Um dos grandes fetiches ficcionais da história é sobre a pessoa que acorda de um coma. Não de um coma qualquer, mas de um longo coma. O cidadão que passou meses, anos adormecido, com sua mente vagando por um ponto desconhecido enquanto médicos, enfermeiros, familiares e amigos passam pelo quarto do hospital se perguntando quando é que tudo isso vai acabar.

No que pensa, se é que pensa, a pessoa que está em coma? Será que escutou as conversas ao seu redor? Sentiu raiva e quis discordar da opinião de alguém? Será que teve sonhos? Será que viu a luz? Saiu do corpo e flutuou pelo vazio ao seu redor?

Bem, mas estas são grandes questões existenciais e científicas. A fixação ficcional é relacionada mesmo ao momento em que o cidadão desperta do seu sono profundo. O choque ao encontrar um mundo novo por parte de uma mente acostumada com um mundo que não existe mais. As mudanças sorrateiras do nosso cotidiano que, quando acumuladas, se transformam em um turbilhão na vida do enfermo.

Pense no cidadão em coma desde, sei lá, 2012 e que acorda agora, sendo informado que estamos em 2020. Preso em tubos, é informado pela equipe médica que passou oito anos em coma devido a um acidente de carro. Que agora ele será levado para o quarto e que os familiares serão chamados para as devidas providências.

Seus olhos acostumados com oito anos de escuridão permanecem sempre apertados pela grande quantidade de luz. Deitado em uma cama, sem entender nada direito, a televisão está ligada com a transmissão de um Botafogo x Resende pelo campeonato carioca.

O cidadão recém-desperto não sabe de nada ainda. Ele ainda não sabe que o mundo enfrenta a epidemia de um vírus novo, que a rotina da população foi alterada bruscamente. Ele nem pode imaginar quem é o presidente do Brasil, o presidente dos EUA. O Bispo virou prefeito? Quem é esse maluco que virou governador? De onde isso tudo surgiu.

Ele nem pode imaginar que vivemos em um mundo no qual o Jota Quest faz shows em estádios de futebol para pessoas trancadas em seus carros. Que essas pessoas pagaram 500 reais pela experiência de ver Rogerio Flausino cantando “vivemos esperando dias melhores”. Ele mal sabe que o WhatsApp é a principal forma de comunicação da população atual, o que dirá que dançarinas de programas de auditório da Record irão se apresentar dentro de bolhas.

Ele ainda vai saber que a novela que passa na TV é Fina Estampa, a mesma novela que passava na época em que tudo se apagou em uma curva qualquer. Repito, ele não sabe de nada do que se passou no mundo nos últimos oito anos. Junho de 2013, impeachment, surubão de Noronha. Nada, absolutamente nada. Seus músculos sentem a dor da longa inatividade enquanto ele, deitado, tem seu primeiro contato com o mundo atual neste Botafogo x Resende.

Sua mente ainda divaga em lembranças confusas e uma bagunça temporal, como se os anos estivessem empilhados fora de ordem na sua cabeça. O futebol o faz lembrar que ia ter Copa no Brasil. Já foi. Será que o Brasil ganhou? Não. Perdeu? Na semifinal para a Alemanha. A Alemanha foi campeã. Contra a Argentina. Brasil perdeu de 7x1. Não é sacanagem. Foi 7x1 mesmo. Ele desconhece o 7x1

O cidadão presta atenção na TV. Um cidadão entra em campo com roupas de segurança e máscara e segura um grande borrifador que ele despeja sobre a bola como se fosse um trabalhador do campo borrifando pesticida na lavoura. Na sequência vem os times para o campo. Só agora ele repara que o estádio está vazio, como se o time tivesse sofrido alguma punição. 

Os jogadores entram em campo utilizando máscaras. Os técnicos também. Ninguém se cumprimenta. No banco de reservas, todos sentam distantes um dos outros. A TV flagra o gandula também de máscara segurando um borrifador com toalha em uma das mãos. O jogo vai começar.

O juiz faz um sinal e todos se dirigem ao círculo central, onde, permanecem em silêncio por um minuto. Na sequência, outro sinal e todos batem palmas. Mais um sinal e todos se ajoelham no gramado com os punhos erguidos para cima. Os carácteres sobem na tela mostrando que a última atualização aponta 63.134 mortos.

Que porra é essa? Se ninguém sabe no que o cidadão pensou nos oito anos em que esteve de coma, sua cabeça agora é tomada por um enorme letreiro neon com esta frase. Que porra é essa? Que porra é essa?

(Logo depois entra no quarto sua esposa envolta em uma enorme bolha de ar, carregando os trigêmeos que ela teve, frutos de inseminação artificial com seu quarto marido pós-acidente, mas ele nem consegue prestar atenção)

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