Cenas da Pandemia: Reprises

Com a pandemia, praticamente toda e qualquer atividade que requer aglomeração de pessoas foi suspensa. É o caso das peças de teatro, da cadeia audiovisual desde a produção até a exibição em cinemas, passando pelas surubas e feiras populares, exceção feita exclusivamente às filas da Caixa Econômica Federal, consideradas patrimônio imaterial do povo brasileiro e reforçadas graças a um confuso planejamento de distribuição de renda para pessoas afetadas pela pandemia.


Como não poderia deixar de ser, as atividades esportivas foram paralisadas. Durante longos dois meses toda e qualquer partida de futebol do planeta foi suspensa, exceção feita ao campeonato de Belarus, mas assistir um campeonato desse país com duas grafias diferentes deve ser uma tortura que nem os bielorrussos devem aguentar.

Foi assim também com o vôlei, com o basquete, com as corridas de carro, com os jogos de tênis. Só o UFC se manteve na ativa nesse tempo porque, convenhamos, contrair um vírus que pode gangrenar os pulmões, provocar acidentes vasculares, impotência sexual e tantas outras proezas que a ciência descobre diariamente sobre o novo coronavírus, enfim, contrair isso não é a maior das preocupações para um grupo de brutamontes que entra em um ringue para levar chutes, joelhadas, punhaladas, cabeçadas, ter a cabeça prensada contra o chão, podendo sofrer fraturas, inclusive expostas, em qualquer osso do corpo, ter perda de massa encefálica, concussão cerebral, eventualmente entrar em coma ou certamente ter sequelas cerebrais que irão te acompanhar para o resto da vida. Em situações assim, contrair um vírus que pode te fazer morrer afogado é quase um alívio, uma libertação das dores da vida.

O esporte, principalmente o futebol no caso brasileiro, não é apenas mais um lazer, uma brincadeira de gente grande, mas sim uma grande indústria que movimenta a economia e representa considerável fatia do PIB de alguns países, atraindo atenção midiática e vendendo produtos. Dezenas de canais e programas esportivos são transmitidos diariamente para cobrir esse universo e, assim como tantos outros segmentos, teve o trabalho bem comprometido nessa época do ano. Debates esportivos estão cada vez mais surreais, com jornalistas e ex-jogadores desencavando listas insólitas e discutindo contratações improváveis e balancetes financeiros.

A vida dos canais esportivos se tornou especialmente complicada. Oito corridas de Fórmula, dezenas de torneios de tênis, centenas de partidas de futebol das mais variadas competições, torneios nacionais e internacionais de vôlei, campeonatos de basquete, de ginástica, jogos mundiais de verão: tudo foi interrompido pela pandemia. O que sobrou nesse meio período? As reprises.

Imagens exclusivas do título
mundial palmeirense
Nos últimos meses pudemos acompanhar praticamente todos os títulos brasileiros dos últimos 25 anos. Os brasileiros campeões da Libertadores e dos Mundiais (infelizmente o Mundial do Palmeiras não foi transmitido), jogos históricos, jogos bizarros mas que por algum motivo se transformaram em importantes. Os jogos da seleção brasileira nas Copas do Mundo de 70, 82, 94, 98, 2002 e 2014, todas as finais de Copa desde 1970, de Eurocopa desde 1984, os títulos brasileiros nas Copas Américas e Copa das Confederações. Isso sem contar a possibilidade de assistir 86 vezes a Masters Cup que Guga ganhou em 1986, as vitórias de Ayrton Senna no Brasil, os GPs da Austrália de 1986 e 1994, todos os jogos das campanhas de ouro do vôlei brasileiro, a final do vôlei de praia de 1996, a campanha do Dream Team de basquete e da medalha de prata da seleção de Paula, Janeth & Hortência, curiosas reprises da medalha de ouro de César Cielo em uma prova que durou 21 segundos, provas de atletismo, o ouro de Arthur Zanetti, Jogos Paralímpicos e por deus, eu posso estar esquecendo alguma coisa, mas juro que me esforcei.

A transmissão de jogos de futebol, principalmente os títulos mundias de 1994 e 2002 na Globo, foram capazes por gerar alguma comoção nas redes sociais. Sim, por um misto de nostalgia e a sensação de que as coisas já foram melhores um dia. Mas há outra coisa que explique essa comoção, mesmo com a maioria desses jogos disponíveis na internet há muito tempo.

O futebol só é futebol e só é divertido porque gera um sentimento de pertencimento. Tão legal quanto assistir uma partida é poder comentar ela com outras pessoas. Na era das redes sociais esse sentimento é amplificado. Não há a menor graça em assistir o Cruzeiro x Internacional de 1976 e sair comentando por aí que o Falcão jogava demais, porque ninguém vai te entender. Agora, se todos assistiram esse jogo ao mesmo tempo, todo mundo vai se entender e todo mundo vai perceber que faz parte de algo maior. (Convenhamos, isso vale para qualquer evento televisivo. Ninguém vai te dar bola se você sair por aí agora comentando capítulos de Roque Santeiro).

Poder comentar como Kleberson viveu um momento mágico, saber que muitas pessoas estavam juntas vendo o Pagliuca beijando a trave após Mauro Silva quase se transformar no improvável herói do tetra. Isso transformar o futebol no grande fenômeno que ele é. Mesmo quem gosta de assistir partidas sozinhas, trancado em um bunker, há de convir que é a sociabilidade provocada pelo futebol que o transforma em um fenômeno.

Além de tudo, as reprises só proprocionam momentos felizes. Todo mundo já foi campeão uma vez na vida, mas por ano, só uns poucos felizardos podem ver seu time levantar uma taça. As reprises então permitiram aos são-paulinos serem felizes pela primeira vez em uma década. Cruzeirenses puderam se esquecer brevemente do rebaixamento e os botafoguenses, veja você, até aos botafoguenses foi resguardado um pedaço de felicidade e dignidade.

Ligar a TV e saber que você não vai acompanhar aquele Botafogo x Fluminense horrível do campeonato brasileiro de 2008. Que não vai ver o GP da Austrália de 2015. Sem a menor chance de os editores da TV terem decidido transmitir alguma coisa completamente desinteressante. As reprises são um momento de alívio nesses tempos tão difíceis (até quando se repete um jogo que seu time perdeu. Porque a derrota é mais ou menos como quebrar um pé: dói na hora, mas não dói pra sempre).

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