Retrospectiva 2019

Dois mil e dezenove foi um ano violento. Mal havíamos nos recuperado da distopia eleitoral do ano anterior, quando ele bateu em nossas portas, acertou dois socos na nossa cara e aproveitou que estávamos todos nocauteados para bagunçar a casa inteira e ir embora antes que nos recuperássemos.

O ano começou com o Rio de Janeiro passando por enchentes dignas do Velho Testamento (normal para uma cidade cujo prefeito é digno do Velho Testamento). Depois, como o Brasil é um país roteirizado por pessoas que não se importam em repetir argumentos, vimos novamente uma barragem de rejeitos de minérios se romper em Minas Gerais, deixando 235 mortos. Dez adolescentes morreram queimados em um incêndio no centro de treinamentos do Flamengo. O Ricardo Boechat morreu em um acidente de helicóptero. Dois jovens problemáticos mataram dez pessoas em uma escola de Suzano. Tudo isso aconteceu antes do carnaval.

Depois ainda tivemos os incêndios florestais, uma mancha de óleo misteriosa que arrasou praias do litoral nordestino, um hospital pegando fogo no Rio de Janeiro, crianças sendo baleadas no Rio de Janeiro. Enfim, não deu para descansar um minuto sequer, antes que uma nova tragédia fosse noticiada.

O ano que se encerra dentro de alguns instantes foi justamente isso, um ano que não deu para descansar. A importante pauta econômica e o que quer mais que seja: não conseguimos pensar sobre nada disso porque todo dia um grupo de maníacos nos fazia perder tempo discutindo o que era Golden Shower, se é preciso fazer cocô em dias alternados para salvar o planeta, se ONGs estavam incendiando a floresta, se o Leonardo DiCaprio está destruindo o mundo, se os peixes eram animais espertos, se as universidades federais fabricam metanfetamina, se crianças se masturbam com crucifixos e enfim: vivemos todos os dias perdidos em discussões sem sentido, como se o Brasil fosse um eterno Dia da Mamadeira de Piroca.

Igrejas pegaram fogo, a América Latina entrou em combustão espontânea, uma mulher foi engolida por um portão em Goiânia, Gugu Liberato, Padre Quevedo, Roberto Leal, Henry Sobel e Rubens Edwald Filho morreram, o que talvez nos faça pensar que não existem mais especialistas no mundo. A Betina fez um patrimônio de um milhão e ganhou dois milhões de inimigos aos 22 anos, a ponte Rio-Niterói foi fechada duas vezes: a primeira por um sequestrador de ônibus e a segunda por dois jovens de patinete.

Mas o que importa: você certamente não leu esse texto que consumiria um minuto e quarenta e sete segundos da sua vida, porque preferiu escutar um podcast de 38 minutos com as mesmas informações apresentadas aqui, só que cheias de enrolações e interjeições meio ridículas.


Porque 2019 foi isso também: o ano em que as pessoas que mandam áudio no WhatsApp ganharam a guerra cultural. O ano em que as palavras escritas foram enfim abandonadas e que quem mantém um blog foi relegado à escória da humanidade. Vivemos o ano do podcast e das figurinhas e das patinetes elétricas. Admirável mundo novo.

(Lembramos sempre que a Retrospectiva CH3 é feita mais para o consumo da posteridade do que para o consumo atual. Não espere por aqui um relato completo dos fatos do ano, mas um apanhado de sensações sobre o que acabamos de passar, para que quem leia isso daqui a 30 anos tenha uma breve sensação do que vivemos. Inventamos essa desculpa alguns anos atrás para justificar as retrospectivas cada vez mais preguiçosas que lançamos).

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