Podcastmania

Preocupadas talvez com a Covid-19, as autoridades do país ainda não perceberam que o Brasil passa por um surto de podcasts. Talvez os especialistas já tenham percebido, mas não quiseram criar pânico na população com um alerta de nova epidemia. Ou, talvez, eles já tenham feito esse alerta, mas ninguém ficou sabendo porque está todo mundo muito ocupado escutando podcasts loucamente¹.

Os podcasts surgiram no Reino Unido no ano de 2004 e rapidamente se espalharam pelo mundo. A primeira onda do gênero surgiu na virada da década passada, quando o próprio CH3 chegou a gravar 4 podcasts no distante ano de 2010, depois de uns dois anos de planejamento preguiçoso.

Com o advento da banda larga e a proliferação de youtubers, o formato de áudio pareceu destinar o podcast ao esquecimento, hábito exclusivo de alguns fetichistas, algo parecido a comprar CDs ou assistir partidas de Curling.

No entanto, a essa altura você já percebeu que os podcasts voltaram com tudo e sinto aqui que estou falando com as paredes porque você, leitor imaginário, certamente desistiu desse texto na terceira linha. Mas, se eu estivesse narrando esse texto com umas vinhetas, certamente a audiência permaneceria atenta³.

Hoje em dia é praticamente impossível manter uma conversa com amigos, sem que um deles surja dizendo “vocês já escutaram o podcast do...” e a partir daí a conversa tome o rumo inesperado de discutir nos mínimos detalhes arquivos de áudio de 50 minutos, que muitas vezes poderiam ser resumidos em textos que levariam 45 segundos para ser lidos.

Não consigo ver uma razão clara para a recente popularização dos podcasts. Poderia falar sobre a quarentena, mas essa tendência vem desde antes, tanto que o rascunho desse texto jazia na página do blog desde outubro do ano passado, quando a epidemia já era realidade. Talvez tenha alguma relação com o fim de Game of Thrones, o declínio de House of Cards e o fato de Stranger Things ser extremamente curta e fazer cada menos sentido. Mas, por outro lado, existem dezenas de podcasts dedicados a discutir as séries que estão em andamento.

A hipótese mais grave, é claro, é de que tudo isso seja consequência da proliferação de áudios de WhatsApp. Que o fato de essa forma de comunicação ter se tornado aceitável estimulou as pessoas a produzirem áudios cada vez maiores que naturalmente se transformaram em podcasts.

Fato é que as grandes corporações perceberam este grande nicho de mercado. Ao entrar no G1 somos todos apresentados a um enorme catálogo de áudios com duração em torno de meia hora. O mesmo ocorre com o grupo Folha e aposto que a podcastmania vai desde o Brasil 247 até o Terça Livre. Isso sem contar uma multidão de blogs e uma horda de anônimos famosos.

Resumindo: temos mais podcasts do que barbearias gourmets. E minha dúvida é se há público para tudo isso. Não é possível que haja tanta demanda assim de homens dispostos a cortarem seus cabelos em ambientes rústicos de macho lenhador e que toma cerveja artesenal. Mesmo que todo homem do mundo esteja disposto a cortar seu cabelo todo dia em uma barbearia gourmet, acho que muitas delas estariam ociosas.

Voltando aos podcasts, quase qualquer interação social em tempos atuais terminará com a indicação de um podcast. Se um ser humano for escutar todos os podcasts que lhe são indicados, ele muito provavelmente terá que abrir mão de todas as outras atividades de lazer disponíveis. Nada de ler um livro, ver um filme, jogar pedra na casa do vizinho, só restará tempo para ouvir podcasts sobre política, artes, assuntos aleatórios contados de uma maneira agradável que simula uma amizade forçada entre o apresentador e o ouvinte. Bem, talvez esse seja o objetivo.

Mas, indo além, para dar conta de absorver toda essa informação imprescindível, é preciso escutar podcast no trajeto entre casa e o trabalho. Escutar podcast enquanto prepara o café da manhã, enquanto toma o café da manhã e também nas outras refeições. Escutar podcast enquanto escova o dente e toma banho, enquanto troca de roupa, enquanto dorme em algum processo de mindfullness. Viver para escutar podcasts.

Ao longo dos seus 14 anos de história, o CH3 é uma instituição que nunca teve medo de se posicionar ao lado do que acha certo, mesmo que este lado esteja previamente condenado ao fracasso e o vexame revisionista. Fomos críticos ferozes do Humor Stand Up, do programa Na Moral e do clipe de November Rain. Não poderia deixar de ser diferente agora. Diante da febre de podcasts que atinge nossa nação, nos manteremos isolados e diremos não. Seremos o bastião do mundo livre que ainda sonha com a possibilidade de clicar em um link e ele ser apenas um texto de 20 linhas e não um vídeo de seis minutos ou um áudio de 18 minutos ou uma galeria de imagens.

O mundo não precisa de mais podcasts.

¹ Reza a lenda que algumas autoridades chegaram a sugerir “vamos fazer um podcast para alertar sobre esse problema”, momento em que perceberam que eles próprios estavam contaminados e, desta forma, decidiram pelo isolamento social como forma de impedir a propagação desta doença².

² Uma versão um pouco mais malvada da história diz que esses especialistas resolveram se afastar do mundo apenas para poderem escutar podcasts 24 horas por dia. Escutarem enquanto comem, enquanto tomam banho, enquanto realizam necessidades fisiológicas e, se preciso for, não dormir para escutar podcasts sem ter que passar pelo crivo julgador da sociedade.

³ Isso poderia ser considerado um podcast? O que é um podcast? Essa é uma das intermináveis discussões já travadas na máquina de problematizações das redes sociais, já que algumas pessoas podem fazer um podcast para falar que pessoas falando abobrinha com o microfone ligado não é necessariamente um podcast. Ou não.

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