Cuiabá em Setembro (2)


O que não falta no mundo são pessoas dotadas de alguma sensibilidade e domínio dos recursos linguísticos, dispostas a transformar em palavras o encantamento com a beleza que desfila diante dos nossos olhos. Um pôr-do-sol inesquecível, uma visão privilegiada do topo de uma montanha, o azul do mar, a grandiosidade de uma árvore, um pedaço de toco boiando no Rio Sena. Mas ninguém, quase ninguém está aí para criar metáforas sobre aquilo que os olhos não queriam ver, o corpo não queria sentir. Afinal, quem se sente inspirado a falar sobre Cuiabá em setembro?

Que me perdoem os representantes de uma série de movimentos sociais, mas resistência mesmo é viver em Cuiabá em setembro. Não qualquer setembro, até existem aqueles menos exigentes, mas um setembro como este que vivemos no ano da graça de 2019. Quatro meses sem chuva, recorde de focos de calor, com o El Niño aparecendo por aí para deixar a situação ainda mais complicada. Quarenta e um graus. Doze por cento de umidade do ar. Fumaça, muita fumaça. Um setembro como este seria capaz de tirar a poesia da alma de um Mario Quintana. Faria Tom e Vinícius ignorarem Helô Pinheiro passeando pela 24 de Outubro.

Se morasse em Cuiabá, Hércules teria desistido dos seus trabalhos logo antes mesmo de matar a Hidra de Lerma. Michael Phelps não teria ganhado nenhuma medalha olímpica, uma vez que teria preferido nadar o mais lentamente possível, apenas para permanecer o maior tempo dentro da piscina.

O cuiabano típico é um cidadão de olhos constantemente marejados pela irritação provocada pela fumaça. Alguém que se acostuma a tomar choque de objetos inanimados sem nenhuma conexão com qualquer fonte de energia elétrica. Um indivíduo que aceita com resiliência as brincadeiras e o riso de certa forma irônico do Bonner e da Maju quando eles anunciam um calor estonteante para a cidade, como se por dentro pensassem “eita povinho miserável”. Afinal, somos o que somos. Só nos resta mantermos nosso investimento consistente em aparelhos de ar-condicionado, que muitas vezes se tornam incapazes de vencer o desafio que lhe impomos.

Viver em Cuiabá em setembro é se acostumar a sair do chuveiro já seco, antes mesmo de pegar as toalhas constantemente quentes. É se acostumar a pegar o suco na geladeira e encontrá-lo fresco, porque nada fica realmente gelado. É resolver usar o forno, para poder pegar um ar mais fresco. É levar a comida ao carro estacionado no sol, para economizar o gás. É queimar as mãos na água da torneira. Se queimar no volante do carro. Uma vida de constantes provações, que fariam David Blaine virar contador. Afinal, é fácil mergulhar acorrentado em uma piscina de gelo, duro mesmo é vender balinha na esquina da Isaac Póvoas com a Prainha.

Cuiabá em setembro tem um clima impróprio para a prática de atividades físicas, para a formação de grandes aglomerações, mas sabemos que a Defesa Civil é modesta quando faz estes alertas. A verdade é que nossa cidade nessa época do ano é imprópria para a manutenção da vida humana. Observem a felicidade na cara dos fumantes, que sabem que estão inalando muito menos fumaça do que o disponível no ar. Respirar em Cuiabá fará sua saúde se deteriorar até chegar ao ponto em que sua situação deplorável será registrada no verso de uma carteira de Marlboro.

Chegar em casa e parecer que o Vesúvio entrou em erupção no seu quintal. Acordar de manhã e sentir aquele cheiro que, ah, antes fosse de Napalm, mas é só fumaça de cerrado queimando. Viver em Cuiabá em setembro é uma prova suficiente para que qualquer um seja reprovado em um teste de sanidade mental.

*Esse texto tem o mesmo título e o mesmo conceito de outro, publicado por este blog no distante ano de 2008.

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