O Fantástico Mundo de Algumas Pessoas

O fato ocorreu dia desses no meu trabalho. Estávamos em horário de almoço, com as pessoas se aglomerando na copa, esperando sua vez de utilizar o micro-ondas. Eis que surge uma voz afirmando “acabou de ocorrer um tiroteio na porta do banco”. Tal pronunciamento fez com que o forno ficasse apitando por alguns minutos com a comida parada lá dentro, já que todos queriam saber que história era essa, um tiroteio no banco que fica quase ali na frente do trabalho e que é ponto de peregrinação de quase todo mundo em todo dia 10.

O portador da notícia começou a descrever os mínimos detalhes da ocorrência, que envolveu uma mulher que carrega R$ 80 mil na bolsa e que teria percorrido alguns bons quilômetros sendo seguida por uma moto. Ele lamentou a falta de esperteza da mulher, que não buscou ajuda policial e seguiu seu caminho habitual até que, ao chegar na entrada do estacionamento do banco, foi interpelada pelo criminoso, o que resultou na reação de um segurança do Tribunal de Justiça – que funciona ao lado – dando início ao caos e a à balbúrdia.

Depois de almoçar, eu me dirigi até o banco para realizar uma pequena operação financeira. Fui, mesmo temendo encontrar o local cercado por fitas pretas e amarelas, corpos cobertos por lonas, peritos criminais recolhendo cartuchos de balas com luvas brancas, faxineiras limpando com Pinho Sol® o sangue espalhado e uma multidão aglomerada, com direitos a familiares em pranto diante da cena.

Chegando no banco, não encontrei aquele festival de sirenes, policiais fardados entrevistando pessoas enroladas em cobertores, extensa cobertura televisiva com direito ao COMANDANTE HABILTON fornecendo IBAGENS direto do Helicóptero Águia. A vida seguia o seu curso normal, com pessoas desinteressadas pagando boletos, cidadãos tendo que apelar para a nudez como objetivo de escapar da porta-giratória e nenhum sinal de que aquele local havia presenciando uma carnificina horas antes.

Bem, eu já esperava isso. Por mais que o colega de trabalho traçasse um cenário de terror e conflito social, eu sabia que ele, o colega, era mais uma dessas pessoas que vivem em mundo fantástico e fascinante, repleto de aventuras e situações de tensão descontrolada.

Tente lembrar quantas tragédias ou momentos de caos você já presenciou ao vivo. Aqueles momentos em que todo mundo perde a razão, pessoas correm de um lado para o outro e chegam a se esconder debaixo da mesa, caso haja uma mesa no ambiente. Eu me lembro de uma briga em uma pizzaria e um assalto a um carro forte no meio da estrada. Dois momentos em 32 anos. Na vida desse meu colega e das pessoas que, como ele, vivem em uma eterna Sessão da Tarde, situações assim acontecem todos os dias.

Estas pessoas agem como se fossem narradores de rádio, que tentam transmitir mais emoção do que a que de fato ocorre. É com certo pesar que eles informam experiências de quase morte, mesmo que essa experiência seja de uma mulher que ao atravessar a rua ficou a seis metros de distância de um carro que, em um primeiro momento, ela não percebeu que vinha pela avenida. “Quase mataram uma mulher ali na esquina agora”, anuncia. A verdade é que a mulher só teria chegado perto de morrer caso ela descobrisse alguma cardiopatia fulminante naquele exato instante.

Eu me lembro muito bem do meu professor teórico da autoescola, um cidadão famoso nesse blog por sempre utilizar o termo “multidão” como sinônimo de milhares ou muitos. Pois ele viveu uma MULTIDÃO de situações tenebrosas no trânsito, que ele relatava nas aulas, sempre com voz baixa e os olhos arriados, como se a tragédia continuasse se passando diante dos seus olhos dia após dia, mesmo anos após a situação.

Acidentes tenebrosos, alunos que quase provocaram vazamentos nucleares durante a prova prática, os relatos se acumulavam até o dia em que ele contou que estava passando pela rotatória da rodoviária, atrás de um carro que teve o terrível azar de ser interceptado por uma criancinha que corria atrás de uma bola, sendo o choque inevitável, projetando o menininho contra o meio-fio e provocando perda de massa encefálica em pleno asfalto a luz do dia. Naquele dia todos os alunos se certificaram que não queriam estar perto dele, porque ele era um chamariz de catástrofe. Aliás, até hoje, se eu ainda encontrar este cidadão na rua, saio correndo pela minha própria vida.

Em muitos casos o relator é apenas um mentiroso contumaz, que, na impossibilidade de ir para a guerra e adquirir cicatrizes, passa a inventar eventos mirabolantes para valorizar sua rotina banal e insignificante. Em outros casos, a pessoa pode ser uma fetichista da violência e sua imaginação está sempre fabricando cenas de barbárie como forma de extravasar o vazio existencial. Mas, pode ser que o indivíduo em questão seja só alguém sem muita noção da realidade, incapaz de distinguir o verdadeiro perigo. Chega a ser em certo ponto inocente.

Um clássico exagerador nato é o famoso Craque Neto. Nos tempos em que a Bandeirantes transmitia partidas de futebol, Neto era famoso por enxergar situações absurdas e bárbaras dentro de campo. Enquanto o Sertãozinho tocava a bola no meio de campo esperando uma brecha na defesa do Oeste de Itápolis, Neto relatava a cena que apenas ele viu: o Anderson Pico deu um soco na cara do William Barbio. As câmeras passavam a procurar a cena, mas o mais perto que se via era um esbarrão de queixo no ombro.

Neto não tinha limites e poderia descrever cenas cada vez mais doentias. “O Nene escarrou no olho do Barbosa”, “o Vidal acertou um murro de mão esquerda no nariz do Luizinho, que caiu no chão e o Vidal segue dando golpes de joelho contra o crânio dele, que está sangrando pela orelha”, ou “o Romero tirou o pau pra fora e esfregou os genitais na axila do Élder Granja”. Nada comprovado por imagens.

Quanto ao tiroteio lá do início do texto, os jornais publicaram o que aconteceu: uma mulher carregava R$ 28 mil para depositar no banco. Quando desceu do carro foi surpreendida por um assaltante, que levou sua bolsa e fugiu, correndo até uma moto que o esperava na esquina. Um segurança do Tribunal de Justiça – um policial velhinho – presenciou a cena e chegou a atirar, mas passou longe de acertar qualquer coisa que não fosse o chão. A Polícia seguia buscando os criminosos, todos passam bem, exceção feita às sequelas psicológicas.

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