O boicote na era pós-capitalista


- E aí, tudo bom?
- Tudo bom e você?
- Beleza. Cara, eu vou viajar na semana que vem, vou passar um tempo fora e queria marcar pra gente se ver nesse fim de semana, sábado talvez, sair pra jantar.
- Ah que legal, vai pra onde?
- Estou indo para Roma, fazer uma pós-graduação de um ano.
- Ah, tá indo estudar.
- Mas, vou aproveitar para fazer essa turistagem toda, Coliseu, o Papa e tal.
- Vai conhecer o Vaticano, construído com as fortunas retiradas da América do Sul com a escravização de índios e negros?
- É, hehe, mas faz parte.
- Isso sem contar a posição retrógada e os extermínios provocados pelo catolicismo ao longo dos séculos.
- Bem, já vou estar lá mesmo.
- Viaja quando?
- Sai de segunda pra terça. Voo da AirVia*.
- Aquela companhia cujo diretor ofereceu passagem de graça para os eleitores do Bolsonaro que estivessem fora do seu domicílio eleitoral mas quisessem votar?
- É, é essa mesmo. Mas preço estava bem mais barato e tal. Mas aí é que eu vou me ferrar, vou passar oito horas em Campinas e depois mais 10 horas em Lisboa. Vou ter que comprar uns livros e revistas para passar o tempo.
- Contando que não sejam publicações ou autores que apoiaram o golpe parlamentar de 2016.
- É, vamos ver.
- Principalmente a Editora Flish, que além de golpista recentemente promoveu um passaralho às vésperas de declarar falência, bloqueando o FGTS e os direitos de milhares de trabalhadores.
- Vou anotar. Mas, qualquer coisa, o celular está aí para isso mesmo.
- Qual marca?
- Notecell.
- Aquela envolvida no despejo de esgoto irregular que resultou no surgimento de sapos com oito olhos no Rio das Pérolas.
- Acho que vi a manchete.
- E nada de comprar coisas na Livraria Aberta. Viu o texto?
- Acho que vi, mas não cheguei a clicar.
- Porra, eles mantinham os funcionários em um regime de semiescravidão, punindo àqueles que não atingissem as metas de venda com castigos físicos. Pelo menos nove funcionários deram entrada na Justiça alegando que sofreram mutilações.
- Ai complica. Mas enfim, isso eu ainda estou vendo, vivendo só na correria do trabalho, nem parei para organizar esses pormenores. Mas, enfim, topa ir no Alberto’s sábado?
- Sem chance. Esse velho fascista se posicionou de maneira totalmente anti-gay-friendly no Facebook.
- Pizza Loyola, quem sabe?
- O dono é totalmente pró reforma da previdência, além de ter financiado a campanha do governador do PSL.
- Lanchonete do Vaguinho?
- Jamais, depois que o dono gravou um vídeo ofendendo as universidades públicas do país e defendendo que o governo Bolsonaro fuzile oposicionistas. O arrombado é desses saudosistas da ditadura.
- Cateto’s Burger, me passou aqui pela cabeça.
- Pagam abaixo do piso salario aos garçons e cozinheiros.
- Confraria do Pastel?
- Descartam esgoto na lagoa.
- Dom Albuquerque?
- O dono é filho de um ex-deputado envolvido em diversos escândalos e é caro. Somos roubados duas vezes por ele.
- Aí tá ficando difícil, a cidade não é tão grande assim. Você tem alguma sugestão?
- O Quintal Verde.
- Olha aí eu é que tenho minhas restrições, porque eles se dizem veganos, mas não divulgam a origem dos produtos que adquirem e há uma forte suspeita de que eles tenham fornecedores que não seguem as normas do Pacto Global Contra o Sofrimento Animal.
- Isso aí é uma armação dos frigoríficos Cowner e todo o lobby que envolve a indústria de extermínio de animais. Como eles poderiam ferir o pacto se eles não vendem nenhum produto animal?
- Oras, depende dos produtores. Um true vegan não pode aceitar nem que o caro que manuseou a alface utilize um cinto de couro, por exemplo.
- Mas aí é radical demais.
- Pode até ser, mas é o que está no Pacto Global Contra o Sofrimento Animal. Eles é que são os radicais e se é pra ser radical, espero pelo menos que sejam completos radicais e se afundem nesse mar, não deixando nem a cabecinha de fora. Não consigo tolerar essas incongruências de só se ser radical até onde interessa.
- Então também não tenho outra ideia.
- Quem sabe se você vier aqui em casa.
- Onde você mora?
- No condomínio Bentevi.
- É desses que ficam na zona de expansão do Jardim Curió?
- Exatamente!
- Olha essa zona de expansão é um crime ambiental e vai completamente de encontro ao Planejamento Urbano da cidade. A construtora D’Angelo, famosa pelo seu longo histórico de violações ambientais, contaminação de mananciais e condições de trabalhos insalubres, só conseguiu aprovar esse loteamento subornando os vereadores corruptos.
- Na sua casa então.
- Não dá, estou morando em uma intervenção coletivo-artística e só posso receber convidados se a Assembleia Geral aprovar por unanimidade.
- Aí você me complica.
- Quem me complica é você com essa construção heteronormativa de culpar os outros pelos seus fracassos pessoais.
- Eu só queria bater um papo antes de viajar.
- Pode ir então, mas só não conte comigo cúmplice.

E desligaram e viveram infelizes para sempre.

* Todos os nomes de empresas foram inventados absurdamente e qualquer correspondência no mundo real seria um mero infortúnio e infeliz coincidência.

** Prova irrefutável do total caráter ficcional deste texto, está no fato de que ele reproduz uma conversa de telefone, situação totalmente inviável no mundo atual, caso você não trabalhe para uma empresa de telemarketing.

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