A Grande Espiral de Fake News

Tenho que confessar que não tenho a menor propriedade para falar sobre o dia 1º de Abril nos tempos atuais. Na medida em que vamos crescendo, vamos perdendo o contato com nossas tradições infantis e hoje em dia desconheço se o Dia da Mentira ainda tem a importância que ele costumava a ter em tempos remotos. Se exatamente neste momento em alguma sala de aula de uma sétima série qualquer, um aluno se despediu de todos os seus colegas afirmando que irá se mudar para a Suécia. Em um clima de consternação, a novidade se espalha pelo colégio e a mudança escandinava monopoliza as conversas do recreio. Isso ainda existe? As brincadeiras dos jornais são condizentes com a voz das ruas ou são só piadas perdidas de uma tradição arcaica?

Quando ficamos mais velhos, acabamos passando por um processo de institucionalização e acabamos por tomar cuidado com essa data tão perigosa. Nunca vamos marcar um evento no 1º de Abril, assinar um contrato, reconhecer uma firma no cartório. Porque, vai saber, depois podem alegar que firma reconhecida no 1º de Abril não tem valor, pode ser só uma pegadinha do cartorário. A PF não desencadeia nenhuma nova fase da Lava Jato nesse dia, já que o ex-governador do Rio alvo dela iria rir da piada. Enfim.

O que eu sei, é que de qualquer forma, pela sua simbologia, o dia 1º de Abril deveria ser comemorado. Deveria ser feriado nacional e gerar um momento de reflexão coletiva. O Dia da Mentira é o dia mais importante do nosso país. É nosso dia mais verdadeiro. É o dia que nos torna brasileiros. O dia em que tudo faz sentido. É a nossa independência ao contrário, a nossa proclamação infeliz da República, alguma espécie de dia santo. Sentemos e brindemos à mentira, ela é a nossa grande verdade.

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Estamos no dia 1º de Abril de 2006. Um grupo de jovens estudantes está reunido no saguão de um prédio de um Instituo qualquer de uma Universidade Federal quando acontece aquele velho clichê cinematográfico: um clarão seguido por muita fumaça e a aparição de uma pessoa no meio daquilo. Cara assustada, joelhos flexionados e braços entreabertos, como se surfasse uma onda imaginária. Todos se olham assustados, como se querendo que alguém confirmasse que esta cena realmente era real ou se o seguido uso de substâncias perturbadoras do sistema nervoso tinha provocados danos irreversíveis e certamente tristes para pessoas tão jovens.

O cidadão surgido das trevas faz uma revelação para todos: veio do futuro e precisa de ajuda das pessoas no passado para resolver um problema. Sim, os estudantes estão diante de uma versão genérica do Arnold Schwarzenegger. Pois, o Terminator Tupiniquim segue falando que dali a pouco mais de 10 anos, o Brasil será comandado por uma figura obscura que posta vídeos de Golden Shower no Twitter. “O que é Twitter” pergunta um dos estudantes, que acaba sendo informado com antecedência que o Orkut não iria sobreviver muito tempo. “O que é Golden Shower?” pergunta outro, fazendo com que o viajante temporal passe por uma espécie de déjà vu regressivo.

Ele prossegue falando que o presidente será alguém que comemora a ditadura militar, que o Governo será formando por um ministro da educação que elogia Pablo Escobar, um monte de gente que fala que o nazismo é de esquerda. Isso tudo em um cenário no qual os movimentos antivacina e terraplanista ganham cada vez mais adeptos.

Todo mundo fica ali se perguntando onde é que o cidadão quer chegar com esse papo louco, até que finalmente alguém percebe: é 1º de Abril gente. Esse cara veio aqui pregar uma pegadinha na gene. Deve ser um desses caras de teatro contemporâneo compondo o personagem, boa tentativa, mas a gente não vai cair nessa não. O homem do futuro é deixado para trás, lamentando o dia em que esteve no passado. Os jovens vão provavelmente esquecer este dia bizarro da vida estudantil deles. Anos depois, quando um presidente falar em Golden Shower nas suas redes sociais, talvez um deles tenha percepção de que sabia que aquilo ia acontecer. Uma sensação meio desconexa, assim, vaga e incerta, igual a quando temos a percepção de que estamos na continuação de um sonho que nunca existiu.

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Talvez uma análise retrospectiva pudesse nos levar a algum lugar. Se pensarmos em como era fácil enganar uma série de pessoas nesta data específica, como era possível conduzir uma densa narrativa que tornasse factível a mais inconsistente mentira. Eram apenas crianças, você pode alegar, e crianças tendem a acreditar em qualquer coisa. Pois bem, o fato é que essas crianças cresceram e seguem acreditando em qualquer coisa.

Nos primórdios do Facebook eu carregava uma inocente e prepotente indignação relativa as pessoas que compartilhavam links do Sensacionalista como se fossem verdade. As pessoas se indignavam com aquilo e clamavam pela revolução diante de um absurdo que claramente tinha pretensões humorísticas. Um amigo chegou a defender que a graça maior estava justamente na reação das pessoas.

Essa indignação com o absurdo permaneceu, só que reproduzindo fontes cada vez mais bizarras e maldosas, cujas pretensões passavam longe do humor, objetivando apenas a manipulação da opinião pública e a criação de um clima de permanente revolta com a ordem das coisas. Hoje em dia só nos resta perguntar: que porra é essa? O que foi que aconteceu? Que mundo é esse em que as pessoas acreditam em qualquer besteira que surge na timeline. Se está na internet, deve ser verdade. Eis o pensamento padrão.

Há essa grande tendência de se acreditar justamente naquilo que não faz sentido e duvidar de fatos concretos. Por alguma razão, guiamos nossa história para um caminho no qual as certezas científicas se tornam dignas de opiniões contrárias e o palpite adquire verniz empírico.

Há o descrédito das instituições e uma percepção geral de que a divulgação profissional de informações está escondendo interesses financeiros escusos, restando acreditar em qualquer demente mental disposta a falar algo irracional na frente de uma câmera. Porque, vai saber, ele não tem nada a perder, nenhum interesse obscuro, apenas quer ajudar. Além disso, o excesso de informações faz com que tenhamos acesso a um mundo de notícias cada vez mais bizarras. Há um assaltante vestido de unicórnio sendo procurado nos EUA. O que não vai ser verdade?

Fomos condenados a viver em uma espiral de Fake News. Você saí de uma e caí em outra. Uma notícia falsa gera outra notícia falsa, o seu desmentido cria outra e uma notícia verdadeira orgina uma falsa. Uma trama nolanesca que inevitavelmente irá nos levar para a ruína física, financeira e emocional, não necessariamente nesta ordem.

Um brinde.

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