Brasília

Quase todo filme que se passa em um futuro distópico me incomoda particularmente em uma questão: a direção de arte. Aquela história de pessoas com roupas pontiagudas e prateadas em cidades enevoadas, com prédios estranhos e eventualmente carros voadores. Acredito que a criação deste cenário seja uma das maiores dificuldades para os autores. Como criar um ambiente que pareça moderno e dentro das possibilidades humanas, mas que não seja datado por antecedência? Como criar um ambiente para esses filmes, sendo que o melhor cenário distópico já foi criado e não pode ser copiado, porque se chama Brasília e é a capital do Brasil?

Uma cidade planejada no meio do que antes era o absoluto nada, cortada por avenidas de seis pistas, mão e contramão, separadas por um canteiro central que é um latifúndio. À direita e à esquerda de cada pista principal, há outra enorme porção de terra que a separa das pistas marginais, mais quatro faixas separadas por outra enorme porção de terra do lugar onde as pessoas moram, que por sua vez são enormes caixotes muito parecidos. Sim, se você quiser atravessar a rua em Brasília, a atividade pode durar pelo menos dois minutos. Atravessar de uma calçada para a outra no Eixo Monumental corresponde a uma caminha de meio quilômetro.

Todas essas ruas e avenidas não têm nomes, sendo conhecidas apenas por códigos alfanuméricos, semelhantes aos utilizados pelos funcionários da Riachuelo quando eles querem parabenizar alguém no sistema de som. Algumas são conhecidas por apelidos e certamente não existe outro lugar no mundo em que as pessoas falam tão naturalmente de um Eixão, sem que isso tenha alguma correspondência com a Segunda Guerra Mundial.

Quem mora em Brasília já se acostumou com esses códigos, mas eles são inteligíveis para os forasteiros. Quando alguém te diz que é pra você ir ao setor M, QNM 3, conjunto D, leve essas informações a sério. Se você se confundir com alguma coisa, pode parar no QMM 3, ou no QNN 6, ou no setor N, ou no conjunto B e não se iluda: vai ser bem distante de onde você pretendia ir. E vai ser complicado voltar para o Shin Qi 6. Principalmente se tiver acidente na EPTG.

A forma como Brasília foi planejada antecipou em alguns anos a invenção do GPS. Quando alguém tem que ir para o QR 404 Conjunto 10, não vai chegar lá por reconhecer as ruas e os caminhos, mas por uma determinada lógica algorítmica. É possível chegar a qualquer lugar da cidade baseado em uma série de coordenadas, exatamente como no GPS. Locais todos esses iguais. Todos eles longes. Os responsáveis pelo projeto brasiliense previram que seríamos dependentes dos automóveis, mas, mais do que isso, escravizaram os seus moradores. É impossível sobreviver em BSB sem um carro.

Não existe nada perto em Brasília. Como já foi explicado, se até para atravessar a rua é preciso percorrer algumas centenas de metros, para ir de um lugar ao outro é necessário dirigir por pelo menos 8 km, pegando enormes avenidas que desembocam em avenidas ainda maiores, passando pelo setor das indústrias gráficas, caindo em uma avenida pequena – que sempre dá a falsa impressão de que enfim estamos chegando – mas logo você está contornando o prédio da PGR e pegando outra enorme avenida, caindo no Eixão, pegando o eixinho, fazendo uma tesourinha, passando por seis quadras e em todas você teve a impressão de que era o lugar em que você jantou ontem e, enfim, você chega. Loucura. Quando um morador de Brasília diz “vamos almoçar aqui perto de casa”, saiba que você vai entrar no carro e rodas por pelo menos 6 quilômetros. Depois vai olhar no mapa e perceber que realmente era na rua de trás de onde você estava, mas Brasília provoca essa estranha ilusão de ótica: muitas vezes podemos ver o lugar para onde estamos indo e o carro vai sempre pegando a direção contrária a ele, até que uma hora chega.

Os semáforos de Brasília acabam por ser um evento a parte. Não vou dizer que eles são demorados. Vou apenas relatar que uma vez, na saudosa Ceilândia, presenciei o momento em que um motorista negociou a compra de uma nova borracha para o limpador de seu para-brisa com um vendedor ambulante. Os dois tiveram tempo de pechinchar o valor - fecharam em R$ 20 - o vendedor deu o troco para a nota de R$ 50, efetuou a troca do dispositivo e o motorista ainda teve tempo de fazer um teste para conferir que estava tudo funcionando corretamente. Ser vendedor ambulante em semáforos de Brasília é um ótimo negócio.

Diz a lenda que quem se muda para Brasília invariavelmente um dia vai se confundir e errar de quadra e então entrar em um prédio exatamente igual ao seu, só que na quadra que não é a sua, estacionar o automóvel em uma vaga igual a sua no prédio que não é o seu e entrar no apartamento que aparentemente é o seu e só se dar conta de que está na casa errada quando abre a geladeira e estranha a presença de produtos zero lactose, uma vez que você não tem esse problema.

A divisão da cidade por setores é uma das grandes excentricidades inventadas. Alguns dizem, com um certo pesar, que antigamente essa divisão era mais rígida e que hoje já foi desvirtuada, mas esta segmentação se tornou um traço cultural da cidade. Há uma quadra só com lojas de açaí. Há o setor de oficinas mecânicas – em Brasília você sabe que é um dia de sorte quando seu carro quebra justamente quando você está passando por lá, o que é muito raro. Na capital federal se envolver em um acidente pode ser um azar ainda maior dependendo do setor em que você estiver. Como você vai explicar para a família que sofreu um acidente no setor de motéis 12h30? Há o setor hospitalar, o setor de clubes esportivos, o já citado visionário setor de Indústrias Gráficas e o setor de embaixadas, que cria uma enorme confusão mental com suas placas apontando o nome de vários países. Há ainda o setor de Mansões do Lago Sul, que deve render algumas conversas constrangedoras.
- Deputado, o relatório diz que você acumula um patrimônio incompatível com o seu salário.
- Isso é um exagero, eu só tenho uma humilde casa comprada com o dinheiro do meu trabalho.
- Onde ela fica localizada?
- Fica… Sim, fica no setor de Mansões do Lago Sul, mas não é isso que vocês estão pensando.
O lago Paranoá já foi eternizado em um canção de Sergio "Eu Quero é Botar meu Bloco na Rua" Sampaio. Música terrível que o Spotify vive tentando empurrar em suas playlists de MPB.

Com tantos setores, Brasília é provavelmente a única cidade do mundo em que não existe a figura mitológica de um Centro¹. E como não existe centro, não existem lugares em que é possível visualizar pedestres – exceção feita a algo que é tipo um terminal rodoviário embaixo de um viaduto – único lugar em que também é possível avistar ônibus a olho nu – as pessoas descem do ônibus e atravessam a rua e ambos desaparecem. Difícil saber para onde elas vão. Talvez exista um portal. Há no máximo pessoas saindo de um prédio para ir onde seu carro está estacionado e, em Brasília, existe uma lei de que é possível estacionar em qualquer meio-fio. A situação é tão estranha que, quando um turista resolve sair do seu hotel para ir no shopping que fica do outro lado da rua, ele só vai encontrar uns dois pedestres nessa caminhada de 1,2km. E os pedestres, prováveis moradores de Brasília, vão apressar o passo e mudar de lado na calçada – um esforço de seis minutos – porque, bem, como as chances de cruzar com outra pessoa na rua são baixas em Brasília, os locais imaginam que um assalto vai ocorrer. E, se você não é o assaltante, é melhor se precaver.

A cereja do bolo dessa distopia real é a arquitetura da cidade, mundialmente famosa. Quem desce no Aeroporto JK e entra em um automóvel pela Asa Sul vai ter a impressão de que está passando no meio da maior repartição pública do mundo. No entanto, as pessoas moram ali. Prédios que estranhamente são abertos em sua parte de baixo, permitindo a livre circulação de pessoas. Visitantes param para visitar a Catedral de Brasília, que é tanto uma oca pós-moderna quanto uma inspiração para um coque do Chico César.

O principal destaque é a Esplanada dos Ministérios, um enorme conjunto paralelo de caixotes turquesas, compridos e finos como se fossem torres de microcomputadores, todos eles com anexos que criam uma série de microcosmos ministeriais. Como não poderia deixar de ser, há três campos de futebol separando os lados esquerdo e direito dos prédios ministeriais. A Esplanada termina na Praça dos 3 poderes, um enorme cimentado que consiste na única praça sem árvores do mundo. De um lado o Supremo Tribunal Federal, um prédio que parece flutuar no ar. Do outro, o Palácio do Planalto, que em muito se assemelha aos modernos terminais de aeroportos construídos para a Copa de 2014. E no centro, o símbolo maior de Brasília: o Congresso Nacional. Este símbolo fálico, com duas torres gêmeas adornadas por duas meias esferas, palco surreal de grandes acontecimentos nacionais, que nos lembram que Brasília é sim real.

¹Não confundir com o Centrão, figura mitológica que habita o Congresso Nacional.

Comentários