Lembranças diante do fim

Antes de qualquer coisa, o fim do mundo parece uma extrema injustiça para Távix Azevedo. Após anos batalhando em pequenas casas noturnas, bares e festivais independentes, depois de dezenas de vídeos ignorados no YouTube, finalmente o cantor e compositor pernambucano conquistou o sucesso. Sua música “Memórias” agora toca dia e noite nos programas de TV, nas rádios, nos celulares de todo o país. Sua música é a trilha sonora não-oficial das ruas. Por mais que seu rosto permaneça anônimo para as multidões, finalmente realizou seu sonho de se conectar ao mundo com a arte que carrega no peito. E justo agora que o mundo vai acabar.

No entanto, Távix sabe que se o mundo não fosse acabar, ele provavelmente continuaria um irrelevante cantor de covers de Zeca Baleiro em alguma praça de alimentação. “Memórias” foi escolhida como o hino do apocalipse. Canção que o compositor reconhece como uma tentativa ingênua de fazer uma nova “Epitáfio” ou “Trem-Bala” e fala justamente sobre a felicidade de estar vivo, a gratidão por tudo o que passou e a certeza de que valeu a pena. No fundo, ele considera que compôs um porcaria oportunista, mas, sabe que não é possível controlar o discurso uma vez que ele é apropriado pela massa.

O celular do cantor não para de apitar com notificações de novos seguidores no Twitter. Ele já desistiu de contar os compartilhamentos no Facebook, isso sem contar os milhares de vídeos que correm pelo WhatsApp com fotos coloridas e lúdicas acompanhadas por sua música. Seu telefone toca e dessa vez é a produção do Faustão, o convidando para tocar ao vivo no último “Domingão do Faustão”, que vai ao ar dois dias antes de um meteoro atingir a terra, provocando uma cratera enorme entre a Turquia e o Irã, gerando terremotos e atirando centenas de detritos na atmosfera, que voltarão a cair no solo ocasionando ainda mais destruição e levantando mais partículas em um processo interminável que tornará o ar irrespirável e bloqueará a luz do sol dando início a uma nova era glacial que matará rapidamente os poucos que tiverem sobrevivido a primeira fase da catástrofe. Os especialistas – e eles são tantos nesses dias – mais otimistas acreditam que alguns poucos felizardos irão sobreviver e que o mundo não vai acabar, apenas a civilização atual.

Távix acertou sua participação no último Domingão do Faustão, sem cobrar por cachê, afinal, não faz sentido cobrar dinheiro por nada nesse momento. Aliás, nada faz sentido. Esperar dois dias úteis para o dinheiro cair na conta, ser milionário no fim do mundo. Em que outra situação o fim do Domingão do Faustão não seria comemorado? O que ele vai fazer no palco, cantando uma música ridícula enquanto bailarinas fazem uma coreografia escolar e sorriem para a câmera? As pessoas vão assistir isso? Ninguém tem mais nada para fazer na antevéspera do fim? Vão chorar juntas na frente da TV?

No táxi com destino ao aeroporto onde pegará a ponte aérea pra o Rio de Janeiro, o cantor só consegue pensar em qual é o sentido disso tudo. Não entende porque o taxista está ali, fazendo uma corrida em troca de 45 reais que não o servirão de nada a partir da terça-feira. Aliás, já não fazem sentido agora. As ruas de São Paulo estão vazias neste sábado, depois que lojas já foram saqueadas, para desespero dos donos que tentaram evitar a depredação do patrimônio com alguns dias de antecedência. Aqui e ali surgia um corpo estendido no chão, sabe-se lá se de alguém que se matou, que foi morto, que está bêbado ou simplesmente aproveitou o apocalipse para se deitar no meio da Marginal Pinheiros. Ninguém se importa.

Congonhas agora é um território em que a Ordem e o Caos se confrontam. Pessoas tentam invadir o setor de embarque, enquanto funcionários tentam impedir, sem muita força. Duas companhias aéreas fornecem bilhetes de graças para que as pessoas passem o fim do mundo onde quiserem, no que pode ser uma grande ação de marketing tardio, ou realmente uma boa-vontade com os clientes, mas que condena pilotos e comissários e todo aquele pessoal de pista a trabalhar até o fim, para manter tudo em ordem até a chegada do caos. Funcionários ainda limpam os banheiros, há gente vendendo e comprando copos de pão de queijo por 18 reais. Um cidadão resolveu simplesmente derrubar café no meio do corredor e cinco minutos depois alguém já deixava a casa em perfeita ordem para o fim do mundo. Pessoas viajam em pé no corredor do avião lotado. Távix pensa que o piloto poderia simplesmente afundar a aeronave no mar, o que seria um horror: morrer antes da hora programada, faltar ao compromisso final de ser exterminado junto com todo o planeta.

Pessoas estão na praia e outras almoçam em restaurantes caros na Barra da Tijuca. O exército policia as ruas e há seguranças nas portarias. A produtora do programa é simpática e explica como será o roteiro da atração. Távix é maquiado e conversa com técnicos de áudio. O teatro do fim do mundo está bem ensaiado nos bastidores. Do camarim, o cantor assiste a final antecipada da “Dança dos Famosos”. Pessoas que ele nem sabe quem são competem para saber quem é o melhor dançarino do país a dois dias do fim do mundo. Um título que jamais será tirado. Dançam tango. A plateia aplaude. As instituições brasileiras funcionam perfeitamente. No intervalo, o presidente aparece em um pronunciamento alertando para os crescentes casos de violência e para que todos evitem sair de casa neste momento de tensão.

Começa o Ding Dong. Mais quatro famosos, separados em dois times, tentam adivinhar qual é a música reproduzida nos autofalantes como se fosse um toque de celular antigo. A produtora avisa que Távix vai entrar no palco em 20 minutos, que já pode se preparar. É posicionado sobre um palco móvel, apenas ele e seu violão. Alguém aperta a campainha que toca a sua música e ninguém duvida. “Memórias!” grita a celebridade global, ganhando mais alguns pontos nessa gincana do apocalipse. Faustão anuncia que agora, no Seu Domingão, está chegando ele, a nova fera da música popular brasileira, Távix Azevedo. As cortinas se abrem e uma equipe começa a empurrar o palco onde o cantor está. Uma pessoa com prancheta na mão faz um sinal de positivo e aponta a câmera. Távix dedilha o seu violão e canta aquela letra que cada vez faz menos sentido.

“Sou grato pelas lembranças
De quando éramos crianças”

Na plateia, pessoas com roupas coloridas se abraçam e cantam, com as lanternas dos celulares ligadas. Três minutos depois, Távix é ovacionado. Faustão saúda o cantor e começa a fazer perguntas sobre a sua vida, antes de dispensá-lo por toda a curta eternidade. Entre as questões triviais, Faustão interrompe a conversa para avisar que tem que passar a bola para o departamento de jornalismo do Plantão da Globo, que tem novas informações sobre a crise planetária.

Renata Vasconcellos, de olhos marejados, notícia que a Nasa acabou de afirmar que refez cálculos que possibilitam uma última tentativa de salvar o planeta. Grandes interceptadores são instalados em pontos estratégicos do planeta, para disparar munição pesada contra o meteoro que se aproxima da terra. A expectativa é que a fragmentação do pedregulho diminua o impacto inicial, reduzindo consideravelmente os danos provocados e evitando uma nova era glacial. O público vai ao delírio. Faustão chora. Dançarinas pulam e se abraçam. O apresentador pede para que Távix cante mais uma vez essa música que é símbolo da esperança da humanidade. O cantor fica em silêncio por um instante, silêncio quebrado por Faustão que tenta interpretar a emoção da situação.

O fato é que naquele momento, ninguém tem mais informações sobre o comunicado da Nasa. O projeto tinha apenas 25% de chance de dar certo e, se desse certo, um número estimado em 1/15 da população conseguiria sobreviver em médio prazo para enfrentar todas as dificuldades dessa pós-civilização. Mas, diante de tudo o que havia visto nos últimos dias, neste momento pouco importa para Távix Azevedo se o mundo vai acabar ou não. Para ele, é como se o mundo já tivesse acabado.

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