Os comentaristas tomam o poder (Os Pombos de Barra do Piraí)


Anos depois foi extremamente curioso lembrar como tudo aquilo começou. Era uma tarde de quinta-feira e o portal G1 Costa Verde publicou uma notícia sobre uma infestação de pombos que preocupava os moradores de Barra do Piraí, no interior fluminense. Os autores da reportagem não esperavam que ela fosse se destacar, a fizeram apenas para bater a meta diária de publicações. Mas, por uma dessas razões inexplicáveis, os pombos de Barra do Piraí funcionaram como um catalisador da revolta popular.

Hoje os especialistas tentam entender a comoção gerada pelos pássaros da praça. Certamente, aquela não era a única cidade brasileira com esse problema e talvez seja justamente por isso que muitos brasileiros tenham se interessado e se revoltado com o assunto. A imagem de um banco de concreto inutilizado pelas fezes, foto despretensiosamente tirada com um celular, acabou por chamar a atenção e se transformar em um símbolo do Brasil que não deu certo.

A notícia se disseminou rapidamente nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais locais, sempre acompanhado de comentários sobre a ineficiência do poder público ou culpando os estúpidos que alimentavam os pombos. O número absurdo de acessos fez com que a matéria aos poucos fosse ganhando mais destaque, até aparecer na capa do G1 nacional.

Osvaldo Martins. Eis o nome do cidadão responsável por ser o primeiro a utilizar a caixa de comentários da notícia, o que o transformou em uma espécie de José Bonifácio do movimento que estava por começar. Como todo bom comentarista de portal, ele demonstrou indignação com a situação, culpou os políticos e terminou com uma frase de efeito: “Um País que não consegue cuidar dos pombos, nunca vai se livrar das ratazanas que estão no poder”.

Não demorou muito para que alguém associasse a situação ao desgoverno do PT, gerando uma resposta, replicada com acusações de comunismo, pedidos de intervenção militar até chegar ao argumento final de que bandido bom é bandido morto. Cada vez mais revoltados com os rumos da nação brasileira, os comentaristas de portal decidiram ali mesmo se unir, se organizar e lutar pelo poder, porque alguém precisava fazer alguma coisa.

A inspiração imediata foi Donald Trump, um cidadão que carregava a essência dos comentaristas de portal e que havia chegado à presidência da maior potência econômica do mundo. Logo foi criado um grupo de WhatsApp, que entre muitas mensagens de bom dia e correntes, delegou uma série de responsabilidades. Uns iriam atrás dos procedimentos legais para fundar um partido político, outros responderiam pelas estratégias de marketing ou ainda pelo estatuto partidário.

Em pouco tempo foi lançado o Partido do Povo, conhecido pela sigla POVO. Afinal, o povo já está cansado de tanta roubalheira, o povo não aguenta mais pagar tanto imposto para sustentar político vagabundo, o povo não se sente representado por essa corja, que tem que ser presa e morrer na cadeia. Os procedimentos legais foram seguidos e com forte apoio das redes sociais e caixas de comentário, o POVO conseguiu colher assinaturas para se registrar no Tribunal Superior Eleitoral. Logo conseguiram montar os seus diretórios estaduais, que consistem em grupos de WhatsApp.

O êxito do grupo não foi levado a sério no início. Os cientistas políticos analisaram o POVO como um modismo, talvez como um sinal da falta de diálogo da atual classe política com a sociedade. Os militantes de esquerda anunciaram que essa era apenas mais uma tentativa dos reacionários de se organizarem em grupos que disseminam ódio às conquistas populares. Os grupos de direita denunciaram os trejeitos bolivarianos do POVO. Os políticos saudaram timidamente e despreocupadamente a iniciativa, dizendo que a pluralidade da representação popular na política é sempre importante.

Seja pela galhofa, seja pela curiosidade, a página do Facebook do POVO ganhou adeptos e em pouco tempo tinha mais de dois milhões de seguidores. Foi justamente lá que a Executiva Nacional anunciou que o POVO teria um candidato a república. Ao contrário das convenções nacionais ou das prévias empoladas de outros representantes do establishment, o Partido iria por em prática a sua principal prerrogativa: a Democracia Direta Virtual (DDV).

Em dia anunciado previamente, eles compartilharam uma notícia do UOL sobre um habeas corpus concedido a um investigado da operação Lava Jato. Os comentários da postagem estavam abertos e aquele que tivesse mais curtidas nas 24 horas seguintes, seria candidato do POVO. A honra coube a Igor Gomes, cujo comentário de 571 carácteres em CAIXA ALTA e sem nenhuma vírgula, defendendo que os membros do STF fossem empalados, recebeu 68.219 curtidas. Fabiano Oliveira, o segundo mais curtido, seria o vice-presidente.

O comentário original de Igor Gomes viraria um dos memes da semana no Twitter. Pessoas se perguntavam jocosamente se alguém seria capaz de entender o que aquele cidadão queria dizer. Todos que eram perguntados sobre o assunto respondiam com um sorriso no canto do rosto. O POVO era a piada pronta das eleições presidenciais.

A campanha do povo começou de maneira tímida, com Igor Gomes aparecendo em uma série de vídeos de baixa resolução, falando frases aparentemente desconexas contra o status quo político e a falta de ação efetiva. Seu slogan: “O Povo não aguenta mais”. A internet progressista reagiu com memes. Claro, uma ou outra pessoa problematizava a situação, dizendo que o candidato do POVO seria apenas um agente das forças conservadores, um boi de piranha para salvar a pele de Bolsonaro, Alckmin e Meirelles.

Igor passou a ser convidado para participar de programas na TV, debates e seminários. Suas propostas eram amplamente amparadas pelos comentários nos portais: armamento da população, pena de morte, fim do direitos humanos e fim dos impostos. Os especialistas diziam que sua argumentação era rasa, mas ele era tão direto que não deixava brechas para contraposições. Os seus correligionários começavam a lotar a internert com fotos de Igor utilizando óculos escuros ao som de Turn Down for What.

Por falta de dinheiro, espaço na TV e requisitos para participar de debates, Igor fez sua campanha toda em vídeos de baixa resolução. Dizia que no seu mandato o povo é que escolheria os rumos do país através da DDV.

Qual não foi a perplexidade geral da nação quando na metade de agosto uma pesquisa Datafolha mostrou o candidato do POVO com 7% das intenções do voto, a frente de tradicionais partidos políticos? Todos os especialistas entraram em convulsão, mas reforçavam que as chances dele eram nulas, que esses 7% configuravam uma tradicional forma de voto de protesto. Era o reflexo do cansaço da população com a falta de políticas públicas e ineficiência do Estado.

Bem, ainda hoje a comunidade acadêmica não tem um consenso sobre essa situação.  A tese mais aceita é a de que toda a falta de traquejo de Gomes se comunicou diretamente com os anseios do país. Ele parecia ser autêntico. Ele não parecia pré-fabricado por pesquisas qualitativas de opinião. Ele transmitia confiança. Ele falava o que pensava. Ele não deixava brecha para argumentações. Ele era um representante do povo tentando mudar aquela bagunça geral. Ele podia ser meio louco, mas era alguém tentando fazer alguma coisa. Mas, todas estas são teses inacabadas, porque o fato é que ninguém ainda entende como é que ele se elegeu presidente do Brasil.

A pesquisa seguinte do Datafolha colocava Igor Gomes em uma forte briga pelo segundo turno. Especialistas começaram a dar o braço a torcer e dizer que ele tinha alguma chance. Adversários passaram a vasculhar sua vida pessoal e descobriram um passado racista e que, claramente embriagado, havia atropelado uma pessoa. Fora isso, ele não tinha conhecimento sobre administração pública. Esperavam que isso fosse um sopro de sobriedade sobre as pessoas. Mas cada erro de Igor Gomes apenas somava mais votos. Porque ele era fiel aos seus princípios. Ele é coerente. Ele é de verdade.

Com Igor Gomes já liderando as pesquisas de intenção de voto, ele acabou convidado para o último debate transmitido pela Globo. Seus adversários o escolheram como alvo primordial na tentativa de fazê-lo perder a linha e demonstrar sua ignorância. Mas, o candidato do POVO não deixou barato e respondeu os candidatos como se estivesse na internet. Bichona enrustida, acéfalo retardado, cérebro de camelo, ameba desnutrida, órfão de cachaceiro, aprendiz de chupeteiro, narcótico anônimo e cu frouxo foram algumas das expressões por ele utilizadas. Sim, ele estava na Globo. Durante os intervalos, seus assessores replicavam a opinião das redes e Igor as reforçava no debate. Quando era acusado de alguma coisa, o candidato começava uma fala desconexa e que não tinha nenhum ponto lógico para ser contestado.

O domingo da eleição começou inundado por memes do “Candidato do Povo”. Suas frases agressivas eram reverberadas em páginas como o SincerIgor e Igor do Povo. As bolhas do Facebook se romperam e quem criticava o candidato do POVO era ameaçado, preferindo o silêncio.

Quando a última urna de uma comunidade distante do Amazonas foi contabilizada, já na madrugada do dia 08 de outubro, o resultado foi sacramentado: com 76 milhões, 434 mil e 221 votos, ou 66,37%, Igor Gomes foi eleito o novo presidente do Brasil no primeiro turno.

Entre os caos e a perplexidade, os comentaristas do Globo News passaram o domingo inteiro tentando entender o país, sem nenhuma conclusão. Os sites estavam todos perdidos. A mídia internacional tentava oferecer aquele olhar forasteiro e distante, muitas vezes eficaz, mas que nesta vez de nada adiantou. O fato é que um comentarista de portal havia tomado o poder e não havia mais nada que pudesse ser feito.

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