Desbravadores

“Quando eu cheguei isso aqui era tudo mato”.

Esta famosa frase do anedotário brasileiro, esconde uma grande verdade por trás do nosso comportamento. Ela reflete o privilégio dos pioneiros, a vantagem que os precursores têm e sempre terão sobre as próximas gerações, sobre os modistas, sobre os aproveitadores e oportunistas que chegam agora em um lugar e já querem se sentar na janelinha.
Em Dubai corre a lenda de que o velho sábio diz "quando eu cheguei aqui, era tudo areia".

Existem muitos significados ocultos em dizer que “aqui era tudo mato, quando eu cheguei”, frase essa que deve ser dita sempre com uma voz rouca e de sabedoria. Veja bem, aqui era tudo mato e agora não é mais. Quem você acha que limpou esse mato? Quem você acha que deu um duro danado para construir esse mundo maravilhoso do qual agora você usufrui? Fui eu. Tudo bem, posso não ter sido eu, mas foi alguém que poderia ter sido eu, alguém da minha geração, alguém que compartilha a mesma carga cultural que eu carrego. A limpeza do mato foi apenas uma questão de oportunidade.

Por trás dessa frase há também um olhar bucólico sobre o mundo que não existe mais. Porque aqui era tudo mato, ali atrás do mercado, por onde passa uma avenida, corria um riacho cristalino no qual as crianças tomavam banho, os homens pescavam peixes enormes que nutriam toda uma família e era preciso tomar cuidado para não ser picado por uma cobra. Ao invés desta massa asfáltica, corríamos por um bosque, no qual caçávamos pacas, jogávamos pedras em tatus, éramos atingidos por fezes de macacos e um primo meu jura que certa vez viu uma onça.

O sentimento de pioneirismo é levado para todo e qualquer local. Aquela bela cachoeira que você conheceu em Chapada dos Guimarães, saiba que eu fui nela em 1967. Na época, a viagem demorava seis dias entre atolamentos e acampamentos na beira da estrada de chão. Adentrávamos na mata carregando nossos facões e fazíamos a trilha para chegar na cachoeira, virgem e inabitada. Antas e capivaras bebiam água nela e fugiram quando nós chegamos. Fomos guiados por um caboclo, que disse que havia ido lá em 1949, uma época em que a palavra cachoeira nem sequer existia no dicionário.

No entanto, o pioneirismo não precisa ser algo assim tão remoto. Uma questão de dois ou três anos é o suficiente para alguém meter uma fantasia de Pedro Álvares Cabral e falar com voz de sabedoria. Alguém posta uma foto em Arraial da Ajuda? Você pode comentar que está muito diferente de quando você foi em 2012. Pode ter sido só um prédio novo e meio fora do tom, mas essa frase será o suficiente para você penalizar seu adversário amigo, que será atingido pela nostálgica melancolia de não ter conhecido o lugar na plenitude de sua alma, antes de ser atingida pelo viés mercadológico da exploração turística.
"Eu falei, esses barcos aí não são bons não"

Porque na sua cabeça, aquela viagem a São Miguel dos Milagres em 2014, aproximadamente 16 meses antes de ela virar um point do verão, foi um ato desbravador. É como se você tivesse chegado ao local montado em um jegue, ao lado do grupo de cangaceiros que dominavam o local, com os quais você teve que construir uma relação de amizade e confiança, que incluiu o assassinato de coronéis e assar urubu no sertão. De volta a Arraial da Ajuda o seu pioneirismo é tamanho que podemos dizer que você estava na praia quando escutou um grito estranho vindo do mar e alertou seus amigos Ubirajara, Iberê e Ipupiara que uns objetos estranhos estavam chegando na praia.

Afinal, foi você que descobriu o caribe, observou que os canais de Amsterdã são um charme e que o skyline de Nova York é um marco turístico. Não foram as grandes empresas e um trabalho incessante de divulgação das autoridades públicas. No entanto, não temos culpa desse nosso egoísmo, de querermos nos sentir melhores por termos ido primeiro a um lugar em que todo mundo vai no próximo verão. O marketing adora vender experiências exclusivas, fazer com que o cliente se sinta o único a poder viver aquele momento especial.

É assim com a música e foi assim especialmente com as bandas consideradas indies. Qual não era o seu sentimento de frustração quando começava a tocar na novela uma música de uma banda que só você e mais meia dúzia de excluídos sociais escutavam? E logo a comunidade do Orkut era tomada por pessoas que digitavam alternando maiúsculas e minúsculas. E essas pessoas falando que achavam a música da SUA banda linda? Que direito elas tinham de estar lá, sendo que você os escutava desde o disco anterior? Sendo prontamente rebatido por um cidadão que os conhecia desde o primeiro disco. E logo vinha um terceiro que os escutou em um pub de Glasgow em 2002 e virou amigo do vocalista no Myspace. Até chegar ao último, que foi quem abriu o pub somente para que o cara que ele escutava cantarolando no ônibus todo dia pudesse ter um espaço para cantar.

Vai dizer que você não torce para algum amigo artista fazer sucesso, não pela felicidade dele, mas apenas para poder se vangloriar, quando ele estiver nas grandes galerias mundiais, que você conheceu ele quando ele não tomava banho e ganhava moedas das pessoas que achavam que ele era um mendigo, mas que você sabia do potencial dele e não se esquece das cervejas que já tomaram na praça da mandioca.

Não é diferente no futebol. Quando todos na Copa do Mundo prestam atenção em Nordin Amrabat, logo surge alguém para falar que só os desavisados não conheciam o marroquino, que fez uma grande temporada pelo Málaga em 2016, ou como é que a mídia pode desconhecer o fulano que fez uma grande Championship pelo BRENTFORD, ou que só os incautos não haviam prestado atenção nos 11 gols que Khazri fez pelo Rennes na última Ligue 1.
"Eu falei pro Iniesta - toca a bola a rápido e cuidado para não perder o cabelo"

Porque essa é a lógica do mundo, não basta conhecer, é preciso conhecer primeiro, é preciso ter chegado lá com os bandeirantes, ter oferecido água para o cara que controlou o fogo, ter chegado na praia quando a praia não existia e onde hoje vemos o mar, havia a continuidade de um grande continente chamado Pangeia, além de ter sempre confiado no potencial do ser primitivo que saiu da água e resolveu se aventurar em terra firme.

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