Adorável Vizinhança (6)


Antes de voltarem para casa, ele e a esposa decidiram parar em uma lanchonete do bairro e tentar comer alguma coisa com tranquilidade, porque àquela altura, estar em um lugar com crianças ensandecidas em um parquinho e homens gritando em um jogo da segunda divisão exibido no telão parecia o melhor dos mundos. Discutiram amenidades de seus trabalhos, mas passaram a maior parte do tempo em silêncio. Antes de voltarem para casa a mulher pediu para parar em uma farmácia e ele o fez. Enquanto esperava no carro, viu um trecho do culto da igreja evangélica do outro lado da rua e pela primeira vez em sua vida aquilo fez algum sentido. Se sentiu realmente atraído em atravessar a rua e escutar a Palavra. Seu pensamento foi interrompido pela mulher entrando no carro.

Estacionaram o carro na garagem e entraram rapidamente em casa, indo diretamente para dentro do quarto. A música, os gritos, os risos, tudo se confundia naquele momento. Um cheiro podre também invadia a casa. Deitado na cama, o homem decidiu que de alguma forma aquilo precisava acabar. Sem conseguir dormir, ele se levantou de noite para beber um copo de água. Olhava pela janela da cozinha o quintal que parecia um depósito de lixo. Ficou um tempo parado apreciando aquele cenário de destruição e teve a estranha sensação de ser observado. Tentou esquecer o mau presságio e abriu a geladeira em busca de alguma coisa que ele não sabia o que era. Percebeu que não havia nada para comer, que nos últimos dias não se lembrara de ir ao mercado. Fechou a geladeira e então viu que seu vizinho estava em seu quintal o olhando pela janela da cozinha. Parecia transtornado, como só alguém que invade a casa de uma pessoa para observá-la pela janela da cozinha pode estar. Ficou algum tempo parado olhando o vizinho que permanecia imóvel, como se esperando se ele iria pedir por um papel toalha ou algo parecido. O vizinho então disse que era a hora de eles resolverem suas pendências e começou a atirar objetos contra a janela. O homem voltou correndo para o seu quarto e se trancou nele. Sua esposa acordou com a movimentação e ele contou o que havia acabado de acontecer na cozinha. No instante seguinte, o vizinho começou a bater na janela do quarto e gritar “vamos resolver nossa história vizinho”. Pensaram em ligar para a polícia mais pensaram que não adiantaria nada, que o vizinho poderia matá-los antes de qualquer ajuda. Combinaram que era hora de fugir de casa. Iriam para um hotel e então comunicariam a polícia. Tentaram não fazer barulho e saíram de casa.

No momento em que abriram a porta o vizinho também saia para o lado de fora pelo portão lateral e começou a caminhar na direção deles. Os dois começaram a correr pela rua do condomínio e o vizinho seguiu caminhando, dizendo que não adiantava fugir, que eles iriam se resolver a qualquer momento. Logo encontraram um segurança do condomínio e contaram o que estava acontecendo. O segurança se dispôs a ir até a casa dos vizinhos para verificar a situação. O casal seguiu esperando em uma esquina. O segurança voltou uns 10 minutos depois dizendo que bateu na porta da casa, que estava em silêncio e o homem saiu de lá vestido de pijama e com cara de sono, dizendo que não sabia do que ele estava falando, se mostrando até um pouco indignado. Foram informados de que poderiam entrar com um procedimento formal junto ao condomínio e, enfim, seguiriam todo o trâmite normal para averiguar a denúncia, que poderia acarretar em alguma punição para os infratores, caso comprovada a irregularidade, ou para os denunciantes, caso comprovada a má-fé.

Caminharam desolados de volta para casa e resolveram mesmo assim ir para um hotel. Não havia condições de ficarem dentro daquela casa. Enquanto caminhava, comentou com a mulher que o carro dela estava com os quatro pneus furados. No caminho para o hotel, falaram vagamente sobre o que poderia ser feito sem chegar a uma conclusão. O homem no entanto repetia para si, o tempo todo, taxativo, que aquilo precisava acabar.

Sua aparência no trabalho era terrível. Seu chefe chegou a o procurar perto da hora do almoço e disse que se ele precisasse pegar uns dias de folga, ele poderia fazer isso e descontar de umas horas-extras a combinar. Agradeceu. Ao meio-dia, um de seus colegas de trabalho o convidou para almoçarem juntos. Estranhou aquele convite que nunca ocorrera antes, mas aceitou. Depois de se servirem no buffet o colega disse que sabia de tudo o que estava ocorrendo na vida dele. O homem perguntou como e o colega disse que as notícias correm. O homem então lhe contou toda a história e trouxe as atualizações das últimas duas noites e a sua percepção de que precisava acabar com isso de alguma forma. O colega perguntou se ele sabia o que iria fazer. O homem disse que pensou em procurar a polícia e o colega o estimulou a não fazer isso. Disse que a polícia não resolve nada, nem a justiça. Disse que pelo lugar em que eles moravam, enfim, que os vizinhos poderiam ser de alguma maneira influentes e que a justiça só pune quem não tem dinheiro para se defender. O homem concordou em silêncio e perguntou se o colega tinha alguma sugestão. Este disse que ele precisava se defender, o homem perguntou de que forma e o colega foi taxativo: você precisa de uma arma.

O homem disse que nunca havia atirado antes em sua vida, nem sabia se já havia visto uma arma pessoalmente e que aquilo estava fora de cogitação. O colega disse que ele não precisava ter medo, que ele conhecia alguém que poderia emprestar uma arma e que era fácil de usar. Se o vizinho o incomodasse bastava sacar a arma e já seria o suficiente para que ele recuasse. Se ele persistisse bastava apontar a arma e, se mesmo assim, ele não refugasse, era só atirar. Qualquer um pode atirar, insistiu o colega. Não importa onde a bala vai pegar, seu objetivo vai ser cumprido e qualquer coisa depois a gente dava um jeito de pagar sua defesa, já disse que no Brasil só vai preso quem não tem dinheiro para se defender.

Diante da convicção de seu colega o homem acabou por aceitar a proposta. Combinaram que iriam sair mais cedo um pouco do trabalho para encontrar o fornecedor da arma. Assim o fizeram e, quando o homem foi buscar sua esposa no trabalho dela, já estava com uma arma na cintura. Não contou nada para a mulher. Conversaram amenidades, mas sua cabeça estava voltada apenas para as instruções necessárias. Sacar a arma, apontar a arma, atirar, ponto final. Essa história iria acabar logo. Dormiram aquela noite no hotel.

(continua)

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