Adorável Vizinhança (3)


O vendedor da empresa se segurança estranhou que eles não quisessem instalar uma câmera que filmasse a porta de entrada, mas o homem explicou que ali não tinha muito problema, a porta vivia trancada e etc. Mesmo estranhando, o vendedor parabenizou o homem por sua aquisição, falando que no mundo atual é sempre importante pensar na própria segurança e na de sua família. O homem agradeceu constrangido, imaginando o que é que o vendedor pensaria se soubesse o real objetivo daquela instalação.

Como se estivessem no meio de uma investigação criminal, o casal, de uma forma mesmo estranha, se empolgou com a situação e acordou na manhã seguinte com uma expectativa absurda de encontrar fezes no jardim e principalmente o animal responsável por aquele processo de adubagem controvertido e não solicitado. Se decepcionaram quando analisaram a imagem da câmera lateral e não encontraram nada. Da mesma forma, nada viram na outra imagem e de todo modo não havia nada de novo no jardim, portanto o visitante indesejado não havia aparecido àquela noite. O processo se repetiu no dia seguinte, sem nenhuma conclusão óbvia. Até que eles voltaram a tomar a decisão racional de que era melhor observar primeiro o jardim e, uma vez encontrada a merda anônima, ir analisar as imagens em busca de uma resposta.

Enquanto isso, as festas na casa do vizinho seguiam intermináveis e intermitentes. Eles pareciam viver em um constante estado de torpor e aquela música sertaneja em um volume considerável, os repentinos gritos e risadas descontroladas aos poucos foram se tornando uma espécie de novo silêncio, como se os ouvidos fossem capazes de se adaptar ao barulho e deixá-lo de reconhecê-lo. Exceção feita aqueles instantes em que a consciência volta e toda a percepção sonora retorna, parecido com o momento em que você se dá conta de que, mesmo com o volume desligado, a televisão emite um pequeno chiado. Só que ao invés de um pequeno chiado era música sertaneja, que o casal nem gostava, mas que a essa altura já estava decorando alguns versos sem sentido.

Passados alguns dias, em uma manhã aparentemente normal, o homem olhou no jardim e finalmente encontrou uma grande e fedorenta merda despejada próxima ao muro. Apesar do asco inicial, tal fato o deixou ligeiramente feliz e ele correu euforicamente para o computador em busca das imagens da última madrugada, sufocado pela alegria de quem finalmente vai resolver uma dúvida que consumia sua saúde. Ficou um tanto quanto decepcionado quando as imagens do corredor lateral não mostravam um único animal, nada, ninguém que fosse capaz de produzir dejetos daquela magnitude no meio do seu quintal. A câmera dos fundos também não mostrava nenhum animal que houvesse pulado o muro para fazer suas necessidades naquela infeliz casa. Ele ainda checou as imagens de mais alguns dias para ver se a merda não havia passado desapercebida nos dias anteriores, mas nada era mostrado. Decepcionado, desligou o computador e nunca mais voltou a conferir as imagens de segurança.

O casal conversou naquela noite sobre o que estaria acontecendo com eles, de certa maneira eles se viam no meio de um conto grotesco de Stephen King. Não haviam conversado com nenhum amigo ou familiar sobre a situação, porque a mesma era um tanto quanto constrangedora e, além disso, como é que alguém poderia ajudá-los? Não havia nada que ninguém pudesse fazer, exceção feita talvez a contratação de uma benzedeira.

A rotina se seguiu com as noites mal dormidas por conta das festas intermináveis na casa do vizinho e a surpresa de encontrar uma porção mal cheirosa no quintal de vez em quando. Já não recebiam ninguém em casa, porque a sensação era de aquela não era uma casa receptiva para as pessoas e os amigos poderiam ficar com uma má-impressão sobre a vida deles. Foram levando a vida da maneira como dava.

Certa noite, os problemas do trabalho e mais uma infecção na garganta fizeram com que o homem não conseguisse dormir em meio àquele sertanejo universitário entremeado por risadas e gritos de empolgação. Levantou-se da cama em silêncio e foi até a cozinha para beber um copo de água em temperatura normal e tomar um analgésico. Em meio aos pensamentos insones, ele sentiu uma ponta de desespero no fundo do peito, sobre a vida horrível que ele estava vivendo. Aqueles vizinhos eram um terror na vida deles e ele não sabia o que poderia ser feito. Deveria chamar a polícia, chamar o condomínio? E o desgaste pela acusação? E as possíveis retaliações? Talvez fosse o caso de se mudar de casa, mas ele de certa forma se sentia apegado aquele lar para o qual havia se mudado logo depois de casar. As paredes daquela construção conheciam sua felicidade e presenciaram grandes momentos da sua vida. Não era justo que alguém sem noção fosse capaz de destruir tudo isso. Ainda perdido em pensamentos e olhando pela janela sem maiores pretensões, ele viu o exato momento em que um objeto veio arremessado pelo muro do vizinho e caiu uns três palmos ao lado da torneira do quintal. Ele ficou alguns segundos absorvendo aquela informação, torcendo para que sua cabeça febril houvesse criado um momento de ilusão de ótica e aquilo ali não fosse o que ele realmente estava pensando.

Abriu a porta dos fundos e se dirigiu até o local e com a lanterna do celular pode conferir que aquilo ali era realmente a merda de alguém. Provavelmente alguém na casa do seu vizinho havia resolvido jogar a merda no seu quintal, como se sua casa fosse um depósito de excrementos. O homem se sentiu tão humilhado com a situação que chorou em silêncio na volta para a cozinha. Não era possível que aquilo ali estivesse acontecendo.

Voltou para o quarto e pensou em acordar sua esposa, mas achou que era melhor a deixar dormir com seus tampões de ouvido recentemente adquiridos. Que se preocupassem com aquilo apenas no dia seguinte. Passou o resto da noite olhando para o teto escuro, sem dormir. Viu os primeiros raios do sol entrando pelas frestas da casa e de certa maneira se mostrou ansioso para que o despertador do celular tocasse de uma vez.

No dia seguinte conversou com sua esposa sobre o que havia visto e ela também ficou chocada com o fato. No entanto, ambos se demonstraram sem reação com relação ao ocorrido. Pensaram em reclamar com a polícia, mas o que os policiais pensariam de uma denúncia de que um vizinho atirava fezes na casa do outro? Eles não levariam a sério e, caso levassem, o caso certamente passaria nos jornais, expondo a vida deles e fazendo com que eles virassem motivo de chacota. Temia que para sempre fossem vistos como o casal cujos vizinhos arremessavam merda neles. Além disso, era capaz de que algum comentarista de portal ainda os culpasse pelo acontecido. Certamente poderiam pensar que eles tivessem algum comportamento que justificasse a atitude do vizinho.

Poderiam então denunciar o caso ao condomínio, mas é provável que o condomínio resolvesse colocar panos quentes no assunto e seria desagradável que tal assunto fosse parar em grupos alheios de WhatsApp. Poderiam, então, ir conversar diretamente com o vizinho. Abrir o jogo e falar sobre o ocorrido, ponderar que eles não reclamavam das festas, um direito que eles teriam, diga-se, mas que jogar merda por cima do muro era algo completamente inaceitável. O vizinho poderia se mostrar surpreso com o fato e dizer que aquilo nunca mais se repetiria, todos selariam um acordo de paz e a vida voltaria ao normal. Mas, o vizinho poderia dizer que aquilo não iria mais acontecer e que alguém continuasse jogando merda. Ou ele poderia negar o ocorrido e dizer que os acusadores estavam loucos. Ou poderia assumir o fato e dizer que continuaram a fazer. Esse mundo de hoje é complicado, não dá para prever a reação das pessoas e todo e qualquer comportamento absurdo é aceitável sobre a desculpa da liberdade. Enfim, é melhor não falar nada para evitar conflitos. Também decidiram não falar nada com nenhum outro vizinho, uma vez que seria estranho abordar um total desconhecido nas ruas do condomínio e perguntar “e aí, tem aparecido merda humana no seu quintal também?”.

(continua)

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