Pessoas Constrangedoras, volume 14

Pessoas tão chatas que são capazes de te hipnotizar

Quando você menos percebe, aquele indivíduo, pessoa constrangedora, se aproxima de você e não dá mais para fugir. Você já olhou pra ele, ele olhou pra você, mantiveram contato visual e não dá pra ir no banheiro, fingir que está muito concentrado em alguma coisa, pegar o celular. Ele vai realmente conversar com você e você sabe, as conversas dele vão demorar pelo menos 14 minutos, em que ele irá contar uma ladainha interminável sobre a vida dele, citar fatos desinteressantes.

Quem presenciar a cena irá apenas perceber o cidadão falando em seu tom monocórdico uma história modorrenta, enquanto você responde monossilabicamente, assente com a cabeça, olha para outro lugar, como se buscando uma alternativa. As pessoas poderão perceber o seu desespero, mas a verdade é que você entra em transe. Esta pessoa constrangedora tem o dom involuntário da hipnose.

- Cara, você viu a nova propaganda da Petrobras?
- Não vi. Como que é?

Ele começa a explicar os processos técnicos e os objetivos da peça comercial e você já não está mais ali. Seu corpo estará, mas a mente começará a viajar pelo tempo.

Você vai se ver caminhando em uma rua que fica perto da sua casa, pelo qual você sempre passava quando voltava do colégio. Vai lembrar que a rua não era pavimentada e que do lado esquerdo não havia um único prédio construído. No lado direito havia algumas casas e uma fábrica de objetos de fibra de carbono. Aqueles orelhões em formas de araras-azuis eram fabricados ali. Aqueles belos e curiosos orelhões, chamavam a atenção, não me lembro de coisas parecidas existirem em outros lugares. Das cidades que eu visitei pelo menos eu não me lembro. Será que alguém ainda usa os orelhões hoje em dia? E o tempo em que eles funcionavam com fichas. Eu tinha uma ficha guardada de lembrança em casa. Onde será que eu guardei?

- Você lembra aquela entrevista do Duda Mendonça pra veja?
- Claro, claro.

Sua mente vasculha o armário do quarto em busca de uma pista sobre o paradeiro da ficha e passa pelos livros da estante. Eu tenho Dom Casmurro, ou será que eu peguei emprestado de alguém? Não me lembro de ele estar na estante, ou talvez eu tenha emprestado para alguém. Passagens do livro começam a ser lembradas, será que Capitu realmente traiu Bentinho? Ele era um ciumento obsessivo, mas pode ser que o filho deles fosse realmente parecido com Escobar. Difícil não falar em Escobar e não pensar no Alex Escobar. Ah, o livro era da minha avó, deve estar ainda na casa dos meus pais. Minha avó morreu quando eu ainda era muito novo. (Sua mente ligou Alex Escobar a sua avó, porque Alex Escobar torce para o América-RJ, time fundado no bairro da Tijuca e sua avó morava na Tijuca. A lembrança da sua avó te lembra que sempre que você ia na casa dela, você tomava leite com chocolate).

- A IstoÉ inclusive está muito ruim.
- Pior né.

Acho que o queijo acabou. Não ainda tem uma fatia, mas de qualquer forma, se eu comer agora de noite não vai ter para o café da manhã. Acho que vou ter que passar no mercado. Sua cabeça começa a percorrer os armários da sua casa em busca de itens que precisam ser comprados no mercado. Ainda tem leite, preciso de manteiga, acho que só tem um pacote de macarrão, é sempre bom ter dois, vou comprar um pão de forma, minha esposa está gostando de torradinhas, o pacote estava em cima da mesa hoje de manhã e só tinha no máximo três dentro dele, é melhor comprar agora para não ter que voltar depois no mercado, qual será o melhor mercado para ir, acho que o Comper, é o que eu não desvio o caminho, mas lá é muito ruim para comprar queijo, eles vendem em umas embalagens de papel em que o queijo fica todo ressecado.

- Isso lembra muito aquele seriado Black Mirror.
- Hehe

Faz algum tempo que não chove. Acho que vou ter que molhar a grama. O pedaço da grama em que bate mais sol já está bem seco. Pior que a mangueira arrebentou, vou ter que comprar uma nova. Vou ter que ir sábado comprar uma nova, acho que vou ter que ir lá na Carmindo de Campos. Mas nesse fim de semana eu estou de plantão, fica mais difícil de ir. Também estava querendo cortar o cabelo, tenho que arrumar um tempo. No outro fim de semana eu viajo, queria cortar antes da viagem. Será que eu vou no sábado ou é melhor ir durante a semana. Será que dá tempo de cortar o cabelo antes do trabalho, ou eu vou me atrasar muito. Tenho que marcar um almoço com os meus pais. Eu paguei a conta da internet? Vence no dia 8 ou é no dia 10? Não, no dia 8 acho que é o IPTU, mas eu já paguei a última parcela mês passado. Já estamos em julho, tenho agora é que pagar o IPVA do carro. Meu carro está muito sujo, será que eu mando lavar? Consigo lavar ele de manhã antes de ir pro trabalho? Se eu acordar seis horas, talvez.

- Mas tecnologia é isso cara, o negócio é saber usar.
- Com certeza.


Queria tomar um banho. O chuveiro lá de casa não está esquentando muito. Em sua mente surgem as lembranças dos melhores chuveiros que você já conheceu em sua vida, como um do Íbis de São Paulo, daquele hotel que você ficou em Gramado em 2001, como é que era o nome? Não o que você ficou da última vez, aquele tinha variações de temperatura e você ficou queimado. Ah, aquela vez em que você foi na Univag e o professor doutor de microscopia falou em queimação de primeiro grau. Foi engraçado. Seus colegas de escola, por onde andam? Alguns voltavam com você de vez em quando, passando por aquela rua comprida, com algumas mangueiras que contrastavam com o profundo céu de outono, esse céu seco, com uma leve névoa no horizonte, mas que ainda permite ver uma longa distância. Um cachorro ficava embaixo das mangueiras. O hotel se chamava Vovó Carolina. Tinha um ótimo café da manhã. Hoje tem jogo da Libertadores?

- Deixa eu ir cara, vou pegar meu filho no colégio.
- Beleza, abraço.

E a conversa é interrompida antes que você comece a regredir no tempo, se lembrar da vez em que a professora de Artes colocou uma música New Wave e distribuiu confetes para a turma, apagou as luzes e pediu para que todos fechassem os olhos e imaginassem as cores do confete se dissolvendo no céu da boca. Em pouco tempo você estará na sala da casa dos seus tios, assistindo a final da Copa de 94, sem ter percebido que se o Baggio errasse o pênalti a disputa acabava. Se lembrará da primeira vez em que experimentou Ovomaltine. Quem sabe chegará em uma vida passada e superasse os traumas ainda não descobertos.

Essa pessoa poderia cobrar dinheiro para induzir as pessoas ao transe. Mas ela faz isso de graça. Apenas por ser constrangedora.

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