Uber Alles (2)

Não foi fácil contar a decisão para minha esposa. A princípio eu imaginava que não iria durar para sempre, que ia ser apenas uma pequena aventura, um tanto quanto inesperada para uma pessoa como eu. Seria como anunciar que eu decidi pular de paraquedas, sabe. Ou que eu iria fazer uma tatuagem. Seria o meu esporte radical, o meu ato de rebeldia diante do cansaço provocado pelo vazio da existência humana.

A princípio eu tratei o assunto levemente, abordando com um tom de piada, mas aquela piada que nós contamos sérios para ver o que a pessoa vai dizer, temendo que a pessoa leve a sério e ache que você enlouqueceu, mas torcendo para que ela leve a sério e diga “que legal”. No entanto, os anos de convivência fizeram com que ela apenas risse da sua cara, como se dissesse “que piada sem graça”.

A piada foi se tornando recorrente, ou melhor dizendo, passei a abordar a questão com uma frequência realmente absurda, o que deve ter feito com que ela desconfiasse que algo estivesse acontecendo. Ensaiei momentos em que eu pudesse abrir meu coração, mas imaginava a reação negativa dela e voltava atrás. Sim, não deve ser fácil para alguém que casou com um contador, ver essa pessoa de uma hora para a outra se metamorfosear em motorista de Uber. E a segurança, e a estabilidade? Sim, eu sei que se eu mesmo pensasse racionalmente acabaria desistindo dessa ideia. Mas estava tomado pelas minhas emoções. Até um contador pode ser permitir isso. E assim foi indo, por uns dois meses. Me encarava no espelho, balbuciava o meu discurso, chegava na sala, assistíamos TV, mas eu não tinha coragem. Ela me encarava, como se soubesse que eu tinha alguma coisa para dizer, os anos juntos criam essa intimidade que é impossível de disfarçar. Mas eu desconversava e por sorte todo dia havia alguma notícia política surreal que eu poderia comentar e estabelecer um longo diálogo sobre o que estávamos vivenciando.

Até que um dia a coragem chegou, ou melhor dizendo, as palavras me escapuliram pela boca. Já estávamos na cama, trocando aquelas últimas palavras sobre o dia e divagando sobre qualquer coisa antes de dormir. Acho que as luzes apagadas me deram a coragem, porque assim eu não precisaria olhar no rosto dela o quanto ela me recriminava. Depois que o assunto pré-sono havia se esgotado eu disse “eu quero virar motorista de Uber”. Se eu não vi a sua reação, pude escutá-la, ou melhor, não escutá-la. Minha esposa não disse nada, resmungou qualquer palavra e se virou de lado. Não me deu boa noite.

Ele quase não falou comigo no dia seguinte, o que devia significar que estava puta. Pensei que minha fala seria a responsável pelo nosso divórcio, que eu haveria de escolher entre ela e o Uber e talvez ela já não fosse uma opção mais disponível. Ficamos dois dias nessa situação, em que eu mal conseguia olhar nos olhos dela e só nos mencionávamos em conversas com as crianças. Rapaz, talvez não haja nenhuma situação tão merda na vida como essa. Mas, no terceiro dia ela veio conversar comigo. Soube mais tarde que ela havia conversado com amigas e levado o assunto para sua sessão de terapia. Deve ter chegado a conclusão de que eu estava na minha crise de meia-idade e que talvez não fosse o fim do mundo que eu arranjasse alguma distração que não fosse equivalente a um caso extraconjugal. Conversamos francamente e confirmei que meu plano era ser motorista do Uber por apenas uma semana, talvez um fim de semana, por nenhum motivo que não fosse o de saber como era, experimentar outra ocupação diferente desta a que eu me dediquei durante quase 20 anos e, melhor ainda, uma ocupação que eu não precisava fazer nenhum curso específico para poder exercer. Combinamos que seria só um fim de semana.

Esperei abril terminar, para finalizar todas as declarações de Imposto de Renda que me eram encomendadas, já que isso era o que garantia em boa parte alguma diversão extra para a família. Quando maio começou eu baixei o aplicativo de motorista, enviei todos os documentos necessários e meu cadastro foi enfim aprovado. No primeiro fim de semana de maio liguei o aplicativo e fui para rua trabalhar. Escolhi um horário depois do almoço, para que minha esposa não desconfiasse que eu estava indo para algum bar de noite. Na saída de casa ela me olhou com aquela cara de quem quer demonstrar confiança, até um certo orgulho e te motivar, mas que no fundo está te achando um retardado e contando as horas para essa experiência terminar.

Não deu cinco segundos que eu estava na rua e fui chamado por um passageiro que estava na rua do lado. Queria ir até o aeroporto. Ele entrou, cumprimentei-o e ofereci água e balinhas que comprei na véspera. Fiquei realmente com medo sobre como deveria ser minha abordagem, não queria parecer invasivo, mas também não queria parecer displicente. Fui formal como nunca na minha vida, mas inevitavelmente perguntei para onde ele estava indo. Respondeu monossilabicamente que ia para Curitiba e entendi que não queria conversar. Fomos em silêncio todo o percurso.

No aeroporto peguei outro cliente e atravessei a cidade até sua casa. Depois fiquei rodando pela região durante um bom tempo em pequenas corridas, até que quando meu horário estava chegando, levei um para o shopping que ficava bem perto de casa. Totalizei oito passageiros no meu primeiro dia e ganhei uns 75 reais em cinco horas de trabalho. Pensei que trabalhando nesta carga horária nos fins de semana, conseguiria ganhar 600 reais por mês. Se trabalhasse assim todos os dias, ganharia mais de dois mil reais por mês, e ainda teria um período livre para fazer outra coisa. Minha cabeça se perdeu em engrenagens com a palavra liberdade. Ser motorista de Uber não era uma profissão, pensei, era um estilo de vida.

Já adianto para você que as coisas não são tão fáceis assim. Mais ou menos 40% do que você ganha no Uber, você acaba gastando com combustível. Mais um trocado ou outro aí com a manutenção e o que te resta é um pouco menos da metade do valor que lhe é transferido, já descontando o percentual destinado ao aplicativo. Mas, como eu disse. O que me moveu não foi o dinheiro. Foi a experiência.

Voltei a dirigir novamente no domingo, aproveitando que isto estava no consenso estabelecido com minha esposa. Peguei mais um punhado de clientes, com o tempo vira tão banal que nós vamos esquecendo os detalhes. Com quase todos meus passageiros o assunto era o famoso: como é dirigir pelo Uber, a quanto tempo você está nessa, e etc. Disfarcei sobre minha inexperiência, repeti clichês sobre a liberdade, falei que era bom, que dava pra ganhar alguma coisa, falei sobre minha profissão de verdade, critiquei taxistas, propostas de leis do Governo, enfim. Me senti do outro lado, lembrei da noite em que fui pela primeira vez passageiro. Agora eu sabia como era estar dos dois lados de uma situação. Quando cheguei em casa, minha esposa sorriu para mim como a muito não sorria, como se satisfeita e aliviada pela minha experiência demente ter chegado ao fim e talvez por ter visto que não era a maior loucura do mundo, que eu ainda tinha salvação e que, no fim, sobrevivemos todos.

Comentários