Uber Alles (1)

Rapaz, chega um momento na vida em que um homem precisa arrumar algum hobbie, precisa distrair a cabeça de alguma forma. Você talvez ainda seja muito jovem para entender, não tenha um monte de amigos que se dedicam a jardinagem, participam de ONGs ambientais, realizam trabalhos voluntário, montam uma horta orgânica ou mesmo se dedicam a apreciar cervejas artesanais, fazendo inclusive cursos. São pessoas normais como você é, ou como eu acho que sou. Mas, pode acreditar em mim, um dia vai chegar a hora em que o vazio da existência, o cotidiano maçante e a completa falta de sentido em tudo o que acontece na vida vai cobrar o seu preço. Aí é que você vai se reunir com seus amigos com carreiras estabelecidas, famílias e vai ver que eles viraram marceneiros, restauradores de móveis, tunaram um carro, praticam troca de casais, ou, igual é o meu caso, viraram motoristas de Uber. Tem gente que chama de crise de meia idade, que seja. Não há como escapar desse momento.

Se você quer saber, eu me lembro bem do momento em que eu resolvi virar motorista de Uber, ou para ser mais exato, do momento em que essa ideia surgiu na minha cabeça e nunca mais saiu. Era um pouco antes do carnaval, eu e minha esposa íamos a um aniversário de uma colega de faculdade dela, aniversário de 40 anos, uma baita festa no espaço gourmet do condomínio dela. Conseguimos deixar as crianças para dormir na casa dos avós e resolvemos aproveitar a noite. Decidimos ir de táxi para lá. Nos arrumamos e separamos uma garrafa de uísque e, enquanto tentávamos nos lembrar como é que se pedia um táxi em casa, pensamos que poderíamos ir de Uber, porque não? Ele havia acabado de chegar na cidade, estava em todos os sites.

Baixamos o aplicativo, percorremos os procedimentos burocráticos, fizemos a solicitação e em quatro minutos o carro estaria na nossa casa. Era fantástico e era barato. O valor total da conta foi ridículo, tanto que em um momento eu pensei que nunca mais iria dirigir um carro na minha vida. A festa foi divertida, nosso uísque acabou rapidamente e - antes que você me pergunte, não era dos mais caros, era desses que custam menos de 100 reais, dá pra comprar de vez em quando - passamos para drinques feitos de vodca barata, a essa altura eu já não me importava. Bebi com liberdade, sem o medo de ser preso em alguma blitz, ou de matar eu e minha esposa em um acidente de carro provocado pela minha embriaguez, tornando meus filhos órfãos.

Quando já era madrugada e resolvemos ir embora, não conseguimos encontrar um carro tão rapidamente e fomos informados de que seríamos cobrados pelo preço dinâmico, o dobro do preço original. Acabou não sendo tão barato assim. Estávamos naquele caminho de volta e como não poderia deixar de ser quando se usa de um serviço que é uma novidade, voltamos conversando com o motorista sobre o serviço, as vantagens, falamos mal dos taxistas e enfim. Eu estava bêbado, mas não em um estado eufórico ou deprimido, estava naquele ponto em que o álcool proporciona uma certa leveza nos pensamentos e na alma, e repentinamente as portas da percepção se abrem para você. Tudo faz sentido e cada coisa no universo parece estar em seu devido lugar e isso proporciona uma sensação de paz profunda que precede a ressaca. Tem gente que sente isso quando usa drogas, mas eu sinto eventualmente quando bebo, principalmente bebidas baratas. Talvez a sensação seja provocada pelos resquícios de metal pesado que existem nessas bebidas. Respirava lentamente apreciando esse momento de paz universal quando pensei como é que seria ser um motorista de Uber. Pensei que deveria ser interessante, ganhar um dinheiro, levar pessoas para lá e para cá, conhecer gente nova. Pensei que um dia seria legal ser motorista de Uber, lembrei daqueles anúncios de Facebook que falam sobre o aplicativo e a liberdade que ele proporciona aos seus colaboradores.

Chegamos em casa, minha esposa estava claramente mais afetada pelo álcool e logo desabou na cama, o que significa que metade do objetivo da noite não foi atingido. Eu ainda fiquei mais um tempo deitado na cama, o mundo girando em perfeita harmonia e eu pensando no Uber, como seria legal, que eu poderia ser motorista de Uber um dia, poderia fazer um experimento, lamentei não ser como alguns amigos de humanas que podem fazer qualquer coisa com a desculpa de que é uma experiência de campo, que isso não se aplica bem a um contador como eu, com uma carreira segura, família e etc, etc, etc.

Claro que eu não virei motorista de Uber no dia seguinte. Até ri um pouco enquanto lembrava dessa ideia claramente associada ao estado etílico em que eu estava, ajudei minha esposa a ir para o banheiro enquanto ela tentava se recompor antes que as crianças chegassem em casa e encontrassem a mãe naquele estado deplorável. Eu poderia ter esquecido desta ideia, igual a muitas ideias que nós temos quando estamos bêbados, sabe, ideias de comprar uma casa ou algum produto polishop, de criar ferramentas que resolveriam problemas mundiais, ideias sem nenhum fundamento básico mas que naquele momento fazem sentido. Mas, essa ideia sempre ficou ali adormecida na minha cabeça.

O carnaval chegou e aproveitamos uma noite livre para ir beber, utilizamos novamente o Uber e foi novamente aquela história de poucos minutos, o motorista oferecendo água, oferecendo balinha, conforto, agilidade, qualidade, livre iniciativa, modernidade, fim da máfia dos taxistas, o mundo perfeito. Não estava tão embriagado assim e talvez por isso a ideia tenha se afixado definitivamente na minha cabeça.

Nos dias seguintes aproveitei o meu tempo livre para fazer pesquisas na internet, os prós e contras, o que era preciso, os riscos. Vou te dizer que não era tão vantajoso assim, mas aquela altura eu já estava tomado pelo espírito da emoção. Não era pelo dinheiro, era pela sensação, pelo desconhecido. Eu poderia ter comprado um serrote, um livro ensinando a fazer artesanato, poderia ter adotado dois cachorros, ou um panda órfão, mas enfim, eu decidi que iria virar motorista de Uber, apenas para saber como é.

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