Uber Alles (3)

Passei a semana seguinte relatando minha experiência para todos os meus colegas de trabalho. Alguns me olhavam com espanto, outros com admiração, com desdém, enfim, as mais variadas reações. Mas todos se interessavam na minha história e isso mexeu com o meu ego. Pela primeira vez na minha vida as pessoas olhavam para mim com alguma curiosidade. Pela primeira vez na minha vida eu era uma pessoa interessante. Talvez você não tenha ideia de como isso mexe com a cabeça.

Posso dizer que aquele surgimento súbito de um interesse sobre minha vida, o fato de as pessoas quererem ouvir o que eu tinha pra dizer, foi um vício. Comecei a me sentir dependente daquela atenção dispensada a mim. Sim, dirigi pelo Uber dois dias só, mas a vida de um contador é tão monótona que para mim aquilo se comparava a subir no Everest. Passei alguns dias como um alcóolatra em abstinência, talvez em um estágio inicial do vício, quando a consciência ainda te impede de seguir adiante. Até que um dia eu não consegui mais. Aproveitei um sábado em que as crianças estavam com os avós e que minha esposa tinha ido ao salão para dirigir por aí. Foi fatal. Percebi naquele dia que era isso que eu queria.

Mas não seria tão fácil assim, não dava é claro para comunicar em casa que eu pediria demissão para me dedicar inteiramente a atividade de ser motorista de um aplicativo disponível para iOS e Android. Encontrei uma maneira rudimentar de conciliar os fatos: aproveitando o tempo de serviço no meu emprego, reduzi o horário de almoço e passei a sair do trabalho uma hora mais cedo. Daria para dirigir uma horinha por dia, um pouco mais com a desculpa do trânsito.

Passei um bom tempo assim, uns três ou quatro meses. Ao final do expediente eu tinha uma hora diária de terapia. Conseguia ganhar 50 reais por dia, pegando as tarifas flexíveis dos horários de pico. Com todos os descontos que mencionei anteriormente, eu lucrava uns 400 reais por mês. Não é tão ruim assim, não é mesmo? Quantas pessoas não pagam para conversar com um especialista formado, ou para dar umas porradas nuns sacos de areia e aliviar o estresse. Eu recebia por isso, por mais que ninguém consiga entender como é que eu conseguia descansar dirigindo em horários de pico. É uma coisa pessoal.

Bem, como estava na clandestinidade diante das pessoas próximas eu não podia alardear o que fazia, no máximo agregar algumas novas histórias ao relato dos famosos dois dias que eu dirigi para o Uber e que sempre eram assunto nas rodas de conversa – em que minha mulher disfarçava o aborrecimento como um sorriso, pensando em como as pessoas eram idiotas em se interessar por isso.

Aos poucos, percebi que no fundo o que me movia era o poder. Você talvez não perceba e pode achar que estou exagerando, em um exercício de megalomania, mas aqui dentro do carro sou eu que faço as regras. Meu veículo é minha pequena república, cujo destino é comandado por mim. Pego as pessoas em um lugar e as levo para outro e durante este curto espaço de tempo, a vida e o destino delas estão em minhas mãos. Qualquer coisa que eu fizer pode significar o fim de suas vidas. Caso eu fosse um psicopata disfarçado, poderia cometer diversos crimes. Imagino que nenhum passageiro pense nisso quando entra no carro, mas eu penso. E o meu controle e o fato de que todos saíram ilesos das minhas viagens até hoje, demonstram como eu exerço bem o poder e como conduzo corretamente o destino da minha nação. A vida do passageiro está sempre na mão do motorista, consciente ou não.

Bem, pelo horário em que nós estamos você já deve ter percebido que eu saí da clandestinidade e essa é a última parte do meu relato antes do destino final. Cuiabá é uma cidade pequena, sabemos todos nós. Ok, não chega a ser uma vila de interior, mas é uma cidade em que você acaba involuntariamente encontrando pessoas conhecidas em shoppings, em supermercados, enfim, com uma frequência até razoável. Imagina em São Paulo? Encontrar um amigo por acaso em um lugar deve ser motivo de comemoração. Aqui é a nossa rotina. Era lógico que em algum momento eu prestaria meus serviços para algum conhecido, mas o clandestino acha que nunca vai ser descoberto.

Eu fui descoberto numa sexta-feira, poderia ter dia pior? Estava na minha segunda viagem do meu pequeno expediente, quando fui chamado por uma Márcia. Cheguei até o local da chamada que me pareceu familiar. No instante em que o quebra-cabeça da armadilha em que eu estava me metendo se montava na minha mente, a melhor amiga da minha esposa entrou no carro. Tentei ridiculamente não olhar para ela, mas nós havíamos jantados juntos umas três semanas antes e nossos encontros eram frequentes, não havia como ela não me reconhecer e acho que não demorou mais de 15 segundos.

Ela demonstrou surpresa com minha presença, já que não sabia que eu continuava dirigindo para o Uber. Ela mesmo só havia aderido ao aplicativo graças a propaganda que eu fiz dos supostos dois dias que dirigi. O trajeto até a concessionária em que ela pegaria seu carro que fazia revisão foi percorrido com enorme desconforto. Assim que a deixei, corri para casa. Minha mulher já me esperava, com o demônio nos olhos porque é claro que a amiga já havia falado para ela sobre o nosso encontro. Tivemos uma discussão, ou não sei se foi discussão porque eu não tinha o que falar, apenas escutá-la. Tentei dizer que havia feito isso apenas naquele dia, mas eu nunca soube mentir e no final, chorando, confessei que já fazia uns quatro meses que eu dirigia diariamente para o Uber ao final do expediente. Pode acreditar, eu chorei, igual uma criança com vergonha.

Nos separamos. Era óbvio. Ela disse que o que pesou mais foi o sentimento de traição, o fato de eu não ter contado nada para ela, mas eu sei que essa era apenas uma desculpa mais aceitável para o fim. Se eu mantivesse um relacionamento extraconjugal com outra mulher certamente iríamos nos separar e não importaria nada se eu falasse para ela que todo dia ao fim do expediente iria para o motel com uma pessoa que conheci. Ok, a traição pesa, mas o ato em si já é um motivo suficiente, não querendo comparar relações sexuais fora do casamento com o Uber.

Foi difícil, não nego, imagino o quanto as crianças sofrem e o motivo do divórcio virou uma piada nos círculos familiares e entre os amigos. Não é ridículo? Não é também algo completamente abstrato, dizer que um casal se separou porque um deles resolveu se cadastrar em um aplicativo de motoristas? Quem acharia isso possível uns dez anos atrás, ou menos. Eu não acreditaria.

No entanto, o divórcio foi minha carta de alforria e pude me entregar ao que de fato mais me provocou prazer nos últimos anos. Uns meses depois de sair de casa, saí do emprego e passei a me dedicar inteiramente ao Uber. Trabalho em horários cansativos, mas sou dono de mim mesmo. Posso ir no cinema na sessão das três da tarde, quando a sala é quase que apenas minha e na saída de lá ainda pegar um cliente que vai pagar o valor do ingresso e da pipoca. Se não acordo bem, posso ficar em casa vendo uma receita ridícula da Ana Maria Braga e comendo sorvete direto do próprio pote. Ok, tenho o prejuízo de não ter carteira assinada e assegurados alguns direitos trabalhistas, mas quem ainda tem isso no Brasil? Rapaz, eu sou contador e de finanças eu continuo entendendo. Eu tenho meu plano de previdência privada e se eu fosse você faria o mesmo. Aliás, se quiser, eu ainda faço alguns trabalhos na área para garantir renda extra. Se precisar de alguém pra fazer declaração de Imposto de Renda eu faço, declaração completa, não sou como aqueles estelionatários que preenchem só o campo de rendimentos e te deixam na merda se daqui uns dois anos você comprar uma casa com o dinheiro da poupança que ele não declarou. Se tiver problemas e precisar retificar, eu também faço. Balancetes, enfim. Quando chego em casa, costumo a dedicar uma hora para a contabilidade. Pega o meu cartão.

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