Notícias do Tempo (5ª parte)

Há uma banal cena futebolística que me deixou marcado. O atacante Aloísio, carinhosamente conhecido como Chulapa, disputava uma partida do campeonato paulista pelo São Paulo. Em determinado momento, ele saltou em uma disputa aérea pela bola e caiu de mau jeito. Se sentou no gramado, apertou o pé e fez uma expressão de dor, igual a que eu faço quando bato o dedinho do pé em alguma quina. Foi substituído e todos tiveram a impressão de que era mais uma precaução para não agravar a situação. Dias, ou horas depois, veio o diagnóstico: Aloísio havia quebrado o pé e ficaria algumas semanas afastado do futebol.

Atletas profissionais, em geral, se acostumam com a dor e tem um limiar de dor muito maior do que um reles mortal. Vejo uma partida de futebol disputada, com carrinhos, chutes na canela, travas no tornozelo e imagino que, se eu sofresse alguma daquelas faltas e consequentes quedas proporcionadas por carrinhos exagerados, eu provavelmente ficaria algumas semanas deitado na minha cama sem conseguir andar, esperando a morte chegar o mais rápido possível. Lembro disso, porque nesta sexta-feira eu estava deitado na minha cama pensando sobre o limiar de calor. Quanto calor um ser humano consegue aguentar e por quanto tempo? Tinha para mim que estávamos chegando no limite.

Em Cuiabá nós sempre aguentamos mais calor do que as populações de outras regiões mais temperadas. Ríamos dos paulistas sem camisa a 27 graus. Considerávamos 33 graus como um dia de sorte. Claro que por outro lado nós chegávamos a uma situação de hipotermia quando o termômetro baixava dos 15 graus, situação que se repetia a mais ou menos a cada sete anos. Pensava ali em quantas pessoas já morreram de calor nesses últimos dias. Sem contar no frio do hemisfério norte. A poluição da China. Quanto tempo ainda resistiríamos nessa condição?

No dia anterior, meu amigo cinegrafista contou algumas cenas que presenciou nos seus dias de trabalhos inumanos. Quando a energia acabou e quase todo mundo ficou sem bateria no celular, houve uma correria para estabelecimentos com gerador de energia. Ele me contou a briga por tomadas em alguns hospitais, a situação de desordem total, o caos pelo mundo desconectado. Claro que os geradores desses estabelecimentos não aguentaram muito tempo e logo se apagaram. Quase todo mundo que estava em uma UTI morreu.

Pessoas chegaram a se aproveitar da situação para tentar saquear lojas no centro da cidade, mas por incrível que pareça, pouca coisa aconteceu por conta do calor. Ninguém aguentava sair carregando televisões de 50 polegadas pela rua, ainda mais porque pouca gente ainda tinha combustível em seus carros. Provavelmente a barbárie só não chegou as nossas ruas porque a temperatura não era propícia para barbáries. Um incêndio havia começado no Parque Nacional de Chapada dos Guimarães e não havia meios de combatê-lo. Sabe-se lá o que vai acontecer, com animais fugindo da queimada, até onde esse fogo vai chegar.

Fiquei ansioso com esse cenário apocalíptico e refleti sobre como eu não sabia de nada disso 24 horas antes. A cidade vivia uma situação caótica e eu não sabia de nada. Talvez o país e o mundo estivessem mergulhados na selvageria e eu de nada sabia. Estava apenas sofrendo com o calor, com a falta de água, com a comida que estava acabando na minha casa. Todos deveriam estar morrendo, mas sem nenhuma reação.

Pensei em como o mundo deveria ser menos ansioso antes, como a ansiedade deve progredir ano a ano com a chegada das novas tecnologias. Antes do Whatsapp não ficávamos tensos com as notícias sobre assaltos compartilhadas nos grupos da família. Antes das redes sociais, não éramos informados instantaneamente sobre os infortúnios ou graças alcançadas pelos nossos familiares. Antes da internet não podíamos entrar em um site a qualquer hora para saber que alguém havia promovido um massacre em uma escola. Antes da televisão não víamos a imagem de atentados terroristas. Antes do telefone não recebíamos telefonemas no meia da madrugada sobre a morte de alguém. Antes do rádio, antes do jornal não sabíamos de nada o que acontecia.

Lá atrás, no dia da Revolução Francesa, muitas pessoas deviam estar em outros lugares da França jantando normalmente e só souberam de tudo alguns dias depois. A notícia da Proclamação da República só chegou a Cuiabá 24 dias depois de ocorrer no Rio de Janeiro e atrapalhou o baile do imperador. Enquanto a população do Rio de Janeiro já vivia no tempo da república, os cuiabanos ainda aguardavam a chegada das ordens do rei, que a essa altura já estava em alguma embarcação com destino ao exílio. A vida era menos ansiosa antes da evolução dos meios de comunicação.

Fui para a cozinha e comi minha última fatia de pão. Vi que eu ainda tinha três ovos, provavelmente minhas últimas refeições antes que o mundo de alguma forma acabasse. Se eu tivesse sorte e encontrasse algum palito de fósforo poderia acender o fogão e fritá-los. Pensei se era possível comer arroz frito.

Senti o cheiro de fumaça das queimadas e me bateu um leve desespero pelo tédio de não ter o que fazer. Não tinha capacidade psicológica para ler um livro. Senti saudade das músicas que escutava e me lembrei de um trecho do livro “O Resto e Ruído” que trazia a lembrança banal de que a oportunidade de escutar sua música favorita várias vezes é um privilégio recente da humanidade e surgiu apenas com a invenção dos discos em sei lá quando. Em tempos remotos, bem remotos, um cidadão poderia escutar uma Sinfonia de Beethoven apenas uma vez na vida, ao vivo, no concerto de uma orquestra qualquer e permanecer a vida inteira com essa lembrança, sem oportunidade de se aprofundar nos detalhes da canção que ele adorou.

Lembrei do meu notebook com 60% de bateria. Descobri que eram 16h43. Fazia algum tempo que eu não sabia em que horas eu estava. Conectei meu modem, mas não consegui acessar a internet. Não havia como o sistema estar sobrecarregado, afinal, ninguém devia estar tentando fazer isso. De alguma maneira, a internet deveria ter sido interrompida, tal qual tantos outros serviços. Tentei recarregar algumas vezes, mas meu Google Chrome só me mostrava aquela imagem do dinossauro.

Pensei em como estaria o resto da humanidade naquele momento. Em como estaria Michel Temer naquele calor. Se ele teria algum privilégio, ou se estaria cercado na merda, elaborando algum comunicado a nação que não seria visto por ninguém. Os homens mais ricos do Brasil, os mais pobres. Na desgraça total, apenas em situações como a que estamos vivendo agora, ninguém se sobressaí a ninguém. O fim é torturante para todos e só resta o arrependimento, como naquela música do Titãs que tocou em muitos slides de Power Point nos idos de 2002.

Pensei nos sites de notícias desatualizados. Nas redes sociais paralisadas. Que no futuro, no dia em que alguma civilização extraterrestre chegasse as nossas ruínas, ela descobriria toda essa rede de informação submersa, apagada. Uma narrativa lenta e bruscamente interrompida sobre o fim da aventura humana na terra. Se caso houver sobreviventes a esse momento terrível, um dia os seus descendentes conseguirão reerguer a civilização e reativar o Facebook e um futuro escritor de Best-Sellers, no momento em que existissem pessoas suficientes para proporcionar a existência de um Best-Seller, teria um amplo material de pesquisa.

Todos esses livros, toda essa produção cultural, avanços científicos. Toda essa expectativa terminaria em poucas horas, a não ser que uma reviravolta climática ocorresse. Não sei se havia esse expectativa, o que os cientistas estavam prevendo para os próximos dias, se é que os cientistas ainda existiam e mesmo se o mundo ainda existisse daqui a alguns dias quanto trabalho seria necessário para recuperar tudo. A falta de notícias também provocava uma angústia. Acredito que o isolamento só é bom para quem sempre viveu isolado.

Olhei para o meu notebook com 53% de bateria e aquele dinossauro parado. Tomei a única medida plausível naquele momento e joguei o jogo do dinossaurinho maniacamente. Resolvi jogar o jogo até o fim dos tempos, ou pelo menos até o fim da minha bateria.

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