Notícias do Tempo (4ª parte)

Os telejornais, a internet, o Dráuzio Varella, todo mundo já cansou de explicar as causas da ressaca. Você bebe tanto álcool, que acaba sobrecarregando o seu organismo, que precisa arrumar um meio de eliminá-lo. O resultado é que você fica desidratado e isso provoca aquela dor de cabeça terrível, o gosto ruim na boca, o corpo dolorido, o estomago arrasado. Pior ainda do que a dor física é o sentimento psicológico de que você devia ter evitado, afinal, a sensação é conhecida e você deveria saber o que fazer para minimizar essa pequena tragédia pessoal.

Beber um copo de água entre uma e outra dose de álcool costuma a ser a maneira mais eficiente de evitar o sofrimento do dia seguinte. Uma estratégia que costuma a funcionar no começo, mas que aos poucos vai se perdendo. Não beber muito também parece fácil, mas há aquele momento, aquele pequeno momento de hesitação quando você já está suficientemente bêbado e pensa se deve tomar mais uma dose ou não. Seu cérebro diz que não, mas ele já perdeu um pouco o controle sobre o corpo. Você resolve tomar aquela maldita saideira e então a linha vira. Qualquer controle vai embora e você não para mais de beber e apenas a sorte determinará a sua sobrevivência.

Na última noite eu resolvi brindar o fim do mundo. No escuro da minha casa sem energia, sendo devorado pelos mosquitos que certamente me contaminariam com alguma doença fatal, me apossei de uma garrafa de vodca e misturei com Coca Cola, limão e gelo. Os ingredientes foram lentamente terminando assim como a noite só terminou quando a garrafa estava vazia e eu estava desmaiado no sofá.

Não deveria ter feito isso comigo, pensei quando acordei todo suado no sofá da sala e cheio de coceiras pelo corpo. Verifiquei que a luz ainda não havia voltado e fui checar que horas eram. Meu celular apontava 09h13 e 7% de bateria. Conferi no grupo de trabalho que não haveria expediente. “Vamos aguardar”. Entrei nas redes sociais e vi que vários pontos do Brasil estavam sem luz. Vi uma notícia no Facebook sobre um Nostradamus italiano que previu que o mundo acabaria logo depois que nevasse por dois dias seguidos na praia de Salento. As fotos mostravam a cidade coberta pela neve que caiu por dois dias seguidos pela primeira vez na história. Matteu Tuffari o profeta do apocalipse, que acho que estava certo.

Ainda conferi o termômetro em 45º naquela manhã e as 09h32 o meu celular apagou. Me senti completamente isolado do planeta e com aquela dor de cabeça terrível. Bebi três copos de água, tomei uma dipirona e fui tomar um banho – pretensamente gelado, mas realisticamente apenas morno. Bebi mais dois copos de água e deitei na cama, esperando pelo momento em que a energia iria voltar. Dormi de novo.

Despertei desnorteado e novamente suado. Bebi mais água e fiquei pensando que horas eram. Pensei que aqueles livros pretensamente escoteiros que lemos na infância poderiam ter me ajudado a descobrir as horas de acordo com a posição do sol no céu. Mas, como eu não teria uma resposta e não estava a fim de me queimar a toa, resolvi entrar no meu carro e conferir em seu relógio o horário: 13h06. Estávamos quase completando as primeiras 24 horas sem luz. Eu nunca havia visto isso, nem na época de chuvas intensas, quando árvores destroem postes, explodem transformadores. A situação era inédita e o fato de eu não ter como me informar sobre ela, sem celular, sem ter como acessar a internet foi me causando uma profunda angústia. Eu sou de uma geração plugada, que não sabe como é viver desconectada do restante do planeta.

Uma vez no meu carro, resolvi ir até o meu trabalho com um único objetivo: pegar meu notebook de lá e, com um modem de internet saber o que estava acontecendo. A piscina do condomínio estava lotada, mas as ruas estavam vazias, como em uma manhã de 1º de janeiro. Pouquíssimos carros, ninguém nas ruas, lojas fechadas. Imaginei um mundo de pessoas trancadas em casa, catatônicas e paralisadas diante da situação. Cheguei rapidamente ao trabalho, peguei meu notebook e voltei para casa. Me senti um clandestino naquele mundo sem pessoas.

Pensei que eu deveria comer alguma coisa, mas não havia um restaurante aberto. Fui para casa encontrei apenas pão, presunto e queijo. Pensei que esses seriam meus suprimentos até o fim dos tempos, isso se o presunto e o queijo não estragassem antes. Abri e fechei a porta da geladeira rapidamente. Me dei conta que com a junção da ressaca e do calor, eu ainda não havia ido ao banheiro naquele dia.

Liguei o notebook e vi poucos posts nas redes sociais. Todo mundo devia estar sem bateria no celular, deviam restar apenas alguns poucos sobreviventes, que tinham uma reserva extra, ou que deram sorte de ter 100% de bateria na hora em que tudo acabou. Os próprios portais de notícias estavam desatualizados. A energia elétrica fazia uma grande diferença em todas as nossas atividades. Uma pessoa comentou que algumas TV estavam fora do ar, provavelmente porque não era possível transmitir mais nada. Como ele sabia disso?

Depois de algum tempo, achei uma explicação oficial: com a onda de calor mais forte dos últimos anos, houve um excesso de demanda por energia elétrica, muito provavelmente por conta do número de aparelhos de ar-condicionado ligados, o que sobrecarregou os transformadores de energia, que acabaram sucumbindo em vários pontos do país. Técnicos das concessionárias tentavam reparar o problema, mas o calor os atrapalhava muito dentro daquelas roupas cheias de proteção para evitar que eles fossem eletrocutados. Não havia previsão para que o problema fosse solucionado, apesar do empenho de todos.

Havia sim uma previsão do tempo. A temperatura em algumas capitais poderia passar dos 50 graus na sexta-feira. Estávamos diante de um fenômeno climático, que os cientistas tentavam entender. O fato é que uma bolha de calor se estabeleceu em boa parte do hemisfério sul, afastando toda e qualquer massa de ar frio que quisesse passar por aqui. Os cientistas pensavam que era um efeito do aquecimento global, que alterou a trajetória de alguns ventos, de algumas correntes marítimas e bagunçou tudo. Todas as nuvens estavam indo para o hemisfério norte que, ao contrário de nós, estava cada vez mais gelado. Centenas de pessoas morriam congeladas todas as noites em vários países. Muitas cidades sofriam com a falta de energia elétrica, provocada pela sobrecarga no uso de aquecedores. A situação por lá estava dramática. Não havia o que pudesse ser feito.

Desliguei o notebook que ainda tinha 60% de bateria. Poderia me ser útil mais tarde, ou não. Peguei algum livro para ler, porque a essa altura era o que me restava. Tive dificuldades em manter a leitura e resolvi tomar outro banho. Após três minutos a água acabou. Chequei em outras torneiras da casa e realmente a água havia acabado. Bati na porta do vizinho e ele me confirmou que, sim, havia acabado. A portaria reforçou que o problema se repetia em todo o condomínio, eles iam buscar explicações com a fornecedora de água.

Voltei ao meu carro e saí pela cidade até lugares que eu conhecia. A Universidade estava sem água. Os shoppings estavam fechados. O segurança, com roupa empapada de suor e o rosto coberto de gordura, me avisou que o gerador de energia do estabelecimento havia aguentado apenas algumas horas e o shopping precisou fechar. Pensei em como estariam os hospitais em um momento desse. O meu trabalho estava sem água também. Parecia um problema geral de desabastecimento que, pensei eu, devia ter alguma razão semelhante a falta de energia: sobrecarga, ou sei lá o que.

Resolvi ir até a fornecedora de água e encontrei um pequeno aglomerado de pessoas na porta. Pensei que era assim que as coisas funcionavam antigamente, quando não havia internet ou telefone. Era preciso ir até o local. Havia um ar zumbificado em todas aquelas pessoas falando coisas sem sentido e desencontradas, enquanto uma mulher suada tentava afirmar que a razão do problema ainda estava sendo verificada, mas sua voz se perdia no meio daquela confusão sonora.

Uma equipe de reportagem da TV Gazeta chegou ao local. Estavam com um ar cansado e abatido, sensação que todas as poucas pessoas na rua aparentavam ter. O sol começava a se por e o clima estava um pouco menos infernal, ou, acredito que talvez estivéssemos nos acostumando aquela situação, aplicando na prática uma lógica Darwiniana.

Conhecia o cinegrafista da TV. Perguntei a ele quem iria assistir aquelas reportagens, uma vez que a cidade inteira estava sem luz. Ele riu, dizendo que apenas cumpria as ordens da chefia. Mas, confessou que isso estava acabando, aquela era a última bateria carregada para as câmeras. Fiz uma pergunta/piada sobre como ele se sentia filmando as imagens que ninguém jamais iria ver. Ele me respondeu que seria um bom arquivo, que daria até um documentário.

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