Modelo de Justificativa

“Pelo Brasil. Por minha vó Bizantina que me resgatou das drogas quando eu tinha oito anos. Pelos rios de Tungstênio que brotam em jatos caudalosos por nossas florestas, eu voto sim”.

A semana passada foi uma semana muito estranha. O país pareceu de certa forma petrificado entre dois eventos importantes: a destituição de um chefe de Estado e um feriado nacional prolongado. Foi uma semana de apenas três dias, pouco tempo para esquecer aquele espetáculo surreal proporcionado pelos 511 deputados presentes na Sessão Solene que decidiu favoravelmente pelo avanço do encaminhamento do processo de investigação que pode culminar no afastamento definitivo de Dilma Rousseff.
Esse é o Tungstênio

“Pelo sangue, pelo suor e pelas lágrimas derramadas pelos gloriosos soldados dos países aliados na 2ª Guerra Mundial, que derrotaram o eixo e afastaram o mundo ocidental do jugo do nazi-fascismo, eu voto não”.

O processo sobre o impeachment de Dilma dizia respeito a apenas uma questão: pedaladas fiscais. Se este estranho evento atlético-contábil constituía crime de responsabilidade fiscal e se por isso ela deveria ser afastada do cargo que ocupa. Pesquisas realizadas durante a semana do processo já demonstravam que a imensa maioria dos deputados não sabia o que estava votando. Em seus votos, eles registraram novamente que não sabiam de nada e de certa forma nos fizeram de palhaços: horas e horas debatendo sobre algo que eles não sabiam para no final tomar uma decisão apenas política, decidida mais na base da expectativa de poder. Vai ser maior se ela ficar ou se ela sair? Eis o voto.

“Por Dona Iolanda, a quem serei eternamente grato por aquele bife à milanesa suculento que abateu minha fome durante o verão de 1966. Pelos Beatles, que eram melhores que os Rolling Stones e aqui não cabe nenhuma forma de discussão, eu voto sim”.

Quem votava pelo não ainda tinha um caminho mais facilitado, uma vez que poderia simplesmente dizer que achava que não havia crime que justificasse o impedimento. Mesmo assim, houve quem justificasse seu voto com base em Carlos Lamarca, Marighella, Zumbi dos Palmares e tantas outras pessoas mortas que, aposto eu, se estivessem vivas não teria motivos para se orgulhar da gestão realizada pelo PT.

“Pelo sol que nasce todas as manhãs por detrás das cordilheiras dos Andes, eternizado em um pôster pendurado na parede do meu quarto, bem acima da estante onde carrego uma foto dos meus três filhos: Hugo, já falecido, Ânderson e Roberto, o bastardo, eu voto sim”.

Entre os favoráveis, pudemos presenciar justificativas ainda mais bizarras, até porque elas foram em número maior. Pela paz em Israel, pelos maçons, pelos moradores de rua, pelos corretores de seguro, pelo sol que brilha em Angra dos Reis, pela família em geral, muitos são os motivos que justificam um impeachment. Teve gente que confundiu presidencialismo com parlamentarismo e até quem alegou que o quase ex-governo queria fazer as crianças mudarem de sexo nas escolas.

“Pelo povo que clama pelas ruas por um novo país, que precisaria ser reconhecido pelos países que participam da ONU, para, aí sim, constituir suas fronteiras legais, seu exército, sua burocracia estatal e, principalmente mais importante, sua seleção de futebol”.

Em certo momento, um dos caras da mesa diretora da Câmara, um cara grisalho com um bronzeado exagerado disse que o processo seria aprovado porque a presidente não dialoga com “esta casa”. Foi uma confissão velada de que pouco importa quais são as acusações. O presidente que quiser governar terá que ser uma putinha dos 513 deputados que lá estão. Ou pelo menos, de 172 deles.

“Pela memória de Lucy, minha labradora cega que morreu no fim do ano passado, em meus braços, por culpa desse governo ineficiente que não consegue cumprir o mínimo necessário para garantir a dignidade animal, eu voto sim”.

O que talvez poucas pessoas saibam, é que esse cidadão de cabelo grisalho e bronzeado excessivo é o primeiro-secretário da Câmara, uma espécie de ordenador financeiro. Menos pessoas ainda devem saber que ele responde a 47 processos na justiça, a maioria coisas da época em que ele foi prefeito, essas besteirinhas administrativas às quais todas nós estamos sujeitos. Mas, um desses processos é por trabalho escravo. Fiscais do Ministério do Trabalho encontraram mais de vinte pessoas em condições análogas à escravidão numa fazenda do cidadão, incluindo menores de idade, alguns com 14 anos.

“Pelo grito às margens plácidas, pelo povo heroico, pelo brado retumbante, pelos raios fúlgidos. Pelo meu pênis flácido, que não levanta mais nem com o uso de remédios caros e importados, receitados por médicos amplamente conceituados e que cobram uma verdadeira fortuna por cinco minutos de conversa em que eles não chegam a encostar, ou mesmo a olhar o meu órgão que apresenta esse problema que representa um verdadeiro golpe em minha autoestima masculina e provoca enorme constrangimento”.

Em sua defesa, o cidadão alegou que não sabia que tais práticas eram adotadas em sua fazenda e que ele não autorizou que ninguém fizesse isso. Uma defesa aliás, que em muito lembra o que Lula falava sobre o mensalão, ou o que Dilma diz sobre a Petrobrás. Ninguém nunca sabe de nada. Isso não é uma coincidência.
O cachorro não sabia que não devia comer a tarefa

A alegação de desconhecimento é um dos processos de defesa mais antigos que existem. Desde que o mundo é mundo, uma das nossas primeiras reações é falar que nós não sabíamos. Por quê você não fez a tarefa? Eu não sabia professora. O desconhecimento desarma nossos inquisidores, pensamos. Não há nada que possa ser feito contra uma pessoa que não sabia de nada. Mas, por incrível que pareça geralmente não funcionava e sempre acabávamos levando a punição cabível.

Talvez, a grande contribuição da sessão de votação sobre o prosseguimento do processo de impeachment da Câmara, tenha sido mudar definitivamente os modelos de justificativas que adotamos em nossos cotidiano. Não vamos negar que adoramos uma desculpa, ou inventar razões para justificar o injustificável, ou até mesmo o justificável, apenas para que ele fique mais interessante.

- Fernando, porque você não veio trabalhar ontem?
- Pela paz em Israel. Pelos maçons.

- Luciano, por que você não fez a tarefa?
- Pela luz do luar e pelo brilho do sol de Angra dos Reis.

Em último caso, basta apelar para a família.

- Afonso, isso são horas de chegar? O que você estava fazendo? Por que você chegou só agora em casa?
- Pela minha mãe, dona Nega, que completa 75 anos esse ano, pelo meu pai, que muito batalhou para que o Brasil fosse um país melhor.

Haverá jurisprudência para que suas justificativas sejam aceitas.

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