O ponto da tragédia

Na última segunda-feira eu me dirigi até o município de Várzea Grande, nas proximidades de Cuiabá. Não que eu me orgulhe disso ou sinta algum prazer por essa situação. Trato apenas como uma obrigação que por vezes temos que cumprir. Fui visitar um velho amigo do blog, o Elemento X, e toda vez que eu o encontro, acontece alguma história que vira post no blog. Foi ele que confeccionou um mapa equivocado e me fez parar em uma estrada com destino a morte. Foi ele que presenciou uma briga de anões pela janela de um ônibus.

A região metropolitana de Cuiabá é mundialmente famosa pelo calor infernal e seca interminável. No domingo, véspera do feriado de sete de setembro, choveu na região pela primeira vez após quase dois meses. Na verdade, não chegou a ser uma Chuva, alguns poucos e esparsos pingos bravamente conseguiram chegar até o chão. Assim, não havia nenhum sinal do que estava por vir na segunda-feira.

Saí da minha casa com um vento relativamente forte, que em dois minutos se transformou numa chuva de intensidade média, que durou cerca de oito minutos e quarenta e seis segundos. Se vocês me perguntarem se foi uma das chuvas mais impressionantes que eu já vi em minha vida, eu diria que jamais. Ao longo do caminho, passei por algumas poças de água e muitas folhas de árvores derrubadas pelo vento.

Até chegar a rotatória da padaria citada no texto sobre estar perdido, linkado ali em cima. A partir dali o cenário era de caos, miséria e desolação. Um furacão havia passado por ali. Árvores despencadas pela rua, postes caídos, telhas espalhadas pelo chão, um posto de gasolina veio ao chão e muros caíram. Vocês imaginam o que é um muro inteiro cair pela chuva? Não havia um único fio de luz ainda preso aos postes. Todos estavam derrubados. Aquela rotatória era o marco definitivo que separava a civilização do caos.

Lembro quando eu era criança e presenciei uma cena insólita. Chovia apenas a partir da ponte do Rio Coxipó. À distância era possível perceber aquela massa de água caindo logo após a ponte, enquanto que do lado de cá tudo permanecia seco. Apenas uma outra vez eu vi uma cena assim, com a água caindo no alto de uma avenida, enquanto que a parte de baixo continuava seca.

Todo e qualquer fenômeno natural tem uma área de abrangência. A chuva cai em uma determinada área e sempre haverá uma linha divisória entre onde choveu e onde esteve seco. O mundo é enorme e a população do planeta se concentra em menos de 10% do território terrestre, pequenas ilhas no meio do nada (por nada, leia-se: oceanos, florestas, desertos, descampados). É possível imaginar que a imensa maioria das chuvas irá ter sua área limite em um desses territórios inabitados. Considerando ainda o horário em que a chuva caí e o deslocamento das pessoas nas áreas urbanas, dá pra dizer que a chance de presenciar o exato limite da chuva é baixo. É mais fácil do que ganhar na megassena e do que ser antigido por um raio, mas não é exatamente fácil.

E em outros fenômenos mais raros, no entanto mais devastadores? Quando o furacão Katrina passeou pelo sul dos Estados Unidos, existiu um determinado ponto que dividiu a tragédia suprema de um dia de chuva forte. Talvez, de um lado da rua tudo tenha voado pelos ares, enquanto que do outro só restou umas goteiras.

É possível que um morador da Indonésia tenha acordado mais tarde no dia 26 de dezembro de 2004 e tenha visto que o portão da sua casa tinha ido embora, mas que a água chegou até a metade do quintal. A terra pode ter tremido até o banheiro da sua casa, mas no quarto não. As lavas do vulcão derreteram o muro de trás da sua casa, mas o resto permaneceu intacto. Nas proximidades de Hiroshima, um morador sentiu um sopro um pouquinho mais quente pela janela, seu vizinho disse que não percebeu nada e eles voltaram a lavar a louça acumulada na pia.

Centímetros podem separar a vida da morte.

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