9 Influências Anônimas

Depois de citar os livros que influenciaram o CH3 é hora de lembrar as pessoas anônimas para a multidão que também são marcantes para o desenvolvimento do blog ao longo desses nove anos.

1 Taxista do Rio de Janeiro
No final do ano de 2002 eu passei férias no interior de Minas Gerais e depois passei para ver a família no Rio de Janeiro. Na hora de voltar para casa desembarquei na maravilhosa rodoviária Novo Rio e encontrei o pandemônio. Era o último domingo antes do natal e caravanas de todo o lugar do Brasil desembarcavam por lá. Ônibus chegavam do nordeste e pessoas carregavam caixas na cabeça. Mal era possível andar pelos corredores da rodoviária e encontrar um táxi foi uma pequena batalha.

Quando entramos no Táxi acabamos por encontrar o personagem do Michael Douglas em “Um Dia de Fúria”. O taxista foi gentil conosco, mas ele estava a beira de sofrer um colapso. A rua de saída dos táxis estava trancada por algum motivo desconhecido e demoramos uma eternidade para conseguir sair de lá. Nessa espera estressante, por dezenas de vezes alguma pessoa esbarrava no seu retrovisor que acabava caindo no chão. Na terceira vez ele não aguentou. Levantou do carro e começou a xingar todos que esbarravam no seu carro. Reclamava do tanto de desocupados que estavam na rodoviária sem fazer nada. Apontava para um cidadão bebendo cerveja ao nosso lado e dizia “esse filho da puta aqui, tá bebendo aqui desde às 9h da manhã sem fazer nada. Vai pra casa seu vagabundo filho da puta”. Esse cara não tinha medo do perigo, ele tinha ódio no coração. Muitas vezes, quando busco um post indignado, tento ver o mundo pelos olhos desse taxista.

2 Professor da Auto-escola
Esse eu já citei diversas vezes. Ele era professor teórico da minha autoescola, principalmente do conteúdo de “direção defensiva”. Sua fala era magnética e chamava a atenção a quantidade de tragédias que ele havia presenciado, tragédias que invariavelmente terminavam com miolos de crianças expostos na calçada.

Mas o grande fato marcante desse professor era o seu gosto por reinventar a língua portuguesa, principalmente na parte dos coletivos. Para ele, todo e qualquer coletiva se chamava “multidão”. “Vocês vão enfrentar as ruas com uma multidão de carros”, ou “todos os dias acontecem multidões de acidentes”. Essa sua fala charmosa me chamou a atenção e sempre que posso utilizo o coletivo “multidão”, inclusive já utilizei isso em multidões de textos.

3 Louquinho do Saguão do IL
Éramos estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso e o saguão do Instituto de Linguagens era o nosso ponto de encontro. Aliás, o ponto de encontro de uma multidão de loucos e estudantes, já que o IL era a porta de entrada da UFMT.

Eis que um dia chegou um cidadão perto de nós, devíamos estar num grupo de 10 pessoas e perguntou “posso me sentar aqui?” e antes que falássemos qualquer coisa ele mesmo respondeu questionando “porque eu não poderia me sentar?” e nunca mais terminou de falar. Contou o caso de um filho que, coitado, morreu e discorreu por horas sobre uma vez em que ele esteve em Teresópolis, sabe com quem? Com Walter Avancini. O louquinho era figurante em uma minissérie que ainda contava com a participação de Vera Fischer. Ele estava no meio daquela multidão de figurantes quando Walter Avancini chegou até ele e disse “você”. Nesse processo, ele contou a biografia de Walter Avancini mas nunca chegou até o que aconteceu depois de ter sido escolhido por ele. O louquinho do Saguão do IL é meu exemplo de eloquência e verborragia sem necessariamente precisar contar alguma coisa.

4 Louquinho do Bar do Alano
Assim que eu me formei, um dos primeiros “empregos” que arrumei foi em um jornal experimental de um professor da faculdade. A redação do jornal ocupava um espaço físico interessante. Nos fundos moravam os donos do imóvel. Na frente ficava o Bar do Alano. O jornal ficava em uma salinha no meio disso tudo. Invariavelmente éramos surpreendidos pelos donos chegando em casa e passávamos a tarde escutando conversas de bar.

Foi em um desses dias que ele chegou. Um cidadão que disse “Amanhã vai fazer 15 graus em Cuiabá. Escutem o que eu estou dizendo. Vocês nunca acreditam nas minhas previsões, mas eu repito: amanhã vai fazer 15 graus em Cuiabá” (detalhe é que a temperatura beirava os 40 graus até então). Naquele momento uma dimensão se abriu em minha mente. Fiquei encantado com a fala apocalíptica do sujeito, a certeza e o desafio em seu tom de voz. Naquele momento compreendi a existência dos louquinhos de bairro e isso mudou a minha visão de mundo para sempre. O pior é que realmente fez 15 graus em Cuiabá no dia seguinte. Mostrando que esse mundo é mesmo surpreendente.

5 Careca da Academia
Costumo a frequentar uma academia de ginástica por volta das 6h da manhã. Um horário em que o ambiente permanece praticamente inabitado, com exceção de uma senhora e de outro senhor calvo. É dele que eu falo. Invariavelmente ele puxa assunto para falar dos problemas do mundo, aliás, do problema do mundo, que é o bolsa-família e consequentemente o PT. Os quatro cavaleiros do apocalipse se juntaram por conta dos programas sociais. Mas não é apenas isso. O cidadão também é a favor da morte dos brasileiros e de uma outra série de agendas que fariam o Eduardo Cunha dizer que ele estava pegando pesado.

Eu sempre digo que vivemos acomodados numa bolha. Fazemos amizades por afinidade e, potencializado pelas redes sociais, acreditamos que ocupamos um pensamento médio da humanidade. O Careca da Acadêmia prova que não. Ele é a vida real. E a vida real destila ódio e quer que todo mundo se foda. Se você quer escrever qualquer coisa que seja é melhor ter contato com a vida real.

6 Maluco do Exército
Este é outro personagem frequente das páginas deste blog. Trata-se do sargento/tenente/coronel/general/capitão-de-corveta que me recebeu no dia em que eu me apresentei ao Exército. Enfurecido como um soldado kubrickiano, o cidadão fez um discurso completamente alienado e deslocado da realidade. Perguntou ao meu grupo - os sortudos pré-dispensados - quem ali estudava Direito. Perguntou a eles se no Brasil havia pena de morte e todos foram unânimes ao responder que não. “Que universidade de merda estamos formando meu Brasil. É claro que existe pena de morte! Se o Brasil entrar em guerra, e isso é muito provável, entra em vigor a constituição de guerra e nela a pena de morte está prevista para um único caso: traição à pátria”.

Ele ainda afirmou que antes de sermos dispensados seríamos obrigados a escrever a palavra “exceção” e quem a escrevesse de forma incorreta seria obrigado a limpar as privadas do quartel. Seu discurso teve outros momentos marcantes, brevemente interrompidos por um simpático burocrata que explicava como seriam os próximos procedimentos. Um sopro de realidade no meio da insensatez. Aprendi com esse sargento/tenente/coronel/general/capitão-de-corveta que não precisamos nos basear na realidade para escrever um grande texto. O mundo de dentro da nossa cabeça é por vezes mais interessante.

7 Bêbado do ônibus
Em uma passagem obscura da minha vida, eu prestei vestibular para a Unesp em Bauru, no interior de São Paulo. O último dia da prova foi realizado em um domingo, que coincidia com a última rodada do então campeonato brasileiro. O Santos de Robinho era o favorito ao título, mas se perdesse, poderia acabar entregando o título ao Atlético-PR. Fiz a prova sem saber os resultados dos jogos e ao sair de lá, descobri que o Santos era o campeão por conta de um casal que passou pela rua buzinando e vibrando intensamente.

Entrei no ônibus para voltar até o local em que eu me hospedava e, passando pelo centro da cidade escutei um cidadão cantando “Agora quem dá a bola é o Santos! SANTOOOOOOOOOOSSSSS, o Santos é o novo campeão”. Imaginei que era algum demente no meio da rua, mas logo voltei a escutar o mesmo grito. Percebi que o cidadão visivelmente alcoolizado havia entrado no mesmo ônibus. Ele seguia cantando. “Agora quem dá a bola é o Santos. SANTOOoOOoOoOOSS!” e todos olharam espantados. Ele começou a encarar os passageiros e o cobrador e a se justificar. “Eu não sou santista. Eu sou corintiano, mas o Santos mereceu porque o Robinho joga muito” e tornou a cantar “Agora quem dá a bola é o Santos! SANTOOOOooooOooOOSSSSSS! O Santos e o Robinho mereceu (sic)”. E logo depois desceu do ônibus. Esse bêbado mostra várias coisas: senso de justiça, desprendimento e que o que importa é dar o seu recado. Inspiração eterna.

8 Comentário Anônimo
Foi no dia 8 de Abril de 2008 que ele entrou em nossas vidas. O Anônimo que postou o seguinte comentário no post sobre Como Se Tornar Um Crítico de Cinema: “Como é?!Trabalho de critico não é brincadeira, tampouco alguma função que se baseie em velhos clichês e costumes preguiçosos. No inicio até se deu bem, mas daí em diante transformou o texto numa piada sem graça e sem tamanho. Você é até bem humorado, mas não entende nada de ser critico de cinema, meu amigo”.

Se o dia 21 de junho é o nosso Natal, o dia 8 de Abril é a nossa Páscoa, o milagre da vida. Sempre que eu escrevo um texto para o CH3 eu paro e penso: será que alguém poderia fazer um comentário como esse sobre esse texto? Se a resposta for positiva é sinal de que o texto é bom.

9 Professor Cubano
Esse daqui marcou profundamente todos os membros do CH3. Um professor cubano autor de pérolas do pensamento como “ter ou não ter uma vaca é uma questão muy pessoal” e “qualquer coisa, nós partimos para uma discussão física e vemos quem é mais forte”. Corre a lenda que esse professor protagonizou uma cena de atentado violento ao pudor nos corredores de outra universidade e digo que há uma grande possibilidade que esse blog só tenha surgido por conta dele. Depois dele, nós não teríamos medo de mais nada.

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