A legítima saltenha boliviana

No lugar em que eu trabalho existe uma pessoa que pode se considerar a mais estável entre todos os funcionários. Não, ela não é uma servidora concursada há décadas, muito menos uma indicação política com costas quentes. Nem sequer servidora ela é. Ela é, isso sim, uma vendedora de salgados. Quando a fome bate de tarde ela está lá. No dia em que ela não pode ir, uma tensão ronda o ar e se por algum motivo ela fosse proibida de vender seus salgados por ali, não duvido de uma greve e quiçá uma guerra civil.

Houve, no entanto, uma oportunidade em que essa estabilidade esteve ameaçada. Surgiu, alguns metros adiante, próximo a sombra de umas árvores, outro vendedor de salgados. Temos que admitir que seus salgados eram mais saborosos. Quem ia até ele voltava relatando coxinhas e risoles maravilhosos, um pão italiano de farto recheio, um pastel divino. Havia ainda outro trunfo: ele alegava vender a verdadeira saltenha boliviana.
Cada saltenha guarda em si o mistério da originalidade. Parecem todas iguais, mas, apenas uma delas ou nenhuma delas será a verdadeira saltenha boliviana.

Não sei se o Brasil inteiro conhece a saltenha ou se ela é uma iguaria restrita ao centro-oeste brasileiro. A Wikipédia a descreve como uma espécie de pastel, mas eu nunca observei essa semelhança. São citadas várias possibilidades de recheio, mas aquela que eu considero tradicional mesmo é a de frango.

Criança inocente que fui, sempre acreditei que todas as saltenhas eram iguais e que eram daquele jeito. Engano meu. O salgado é originário da Bolívia e é aí que reside a polêmica. Quem já esteve no país andino e provou a saltenha boliviana, não tem dúvidas de afirmar que a que é vendida no Brasil é uma mera réplica da que é vendida por lá. Que não chega aos pés da original.

Vender verdadeiras saltenhas bolivianas é um marketing danado por aqui. Conheço inúmeros vendedores de salgado que afirmam que as suas saltenhas são realmente originais. E os conhecedores das originais, quando as provam, refutam a hipótese. Sim, temos diversos degustadores de saltenha por aqui.

Esses gourmets de salgado geralmente alegam que o cozinheiro não acertou no gosto da massa, que exige uma preparação toda especial. Quando a massa está perfeita, o problema passa a estar no recheio, que não é seco, mas não chega a ser exatamente molhado. Quando o recheio está certo, o problema é o tamanho. Enfim, produzir uma verdadeira saltenha boliviana é um desafio que beira o impossível e a mim me resta apenas imaginar seu sabor.

Curioso mesmo é tentar entender porque essa disputa sobre originalidade recai apenas sobre a saltenha. Veja as esfirras vendidas em qualquer barraquinha de rua que a qualquer momento será gourmetizada em um truck food. Duvido muito que elas sejam iguais as que são vendidas em mercados públicos do Líbano. No entanto, nunca vi nenhum vendedor dizer que o que ele vende é a verdadeira esfirra libanesa.

No caso da comida italiana, já existe até um consenso de que as pizzas, lasanhas, capeletes e afins que comemos por aqui não são idênticos aos originais. Aliás, já até sabemos que nós aperfeiçoamos as milenares receitas. Brasileiros que vão até a Itália se frustram ao comer pizzas sem recheio, lasanhas finas e capeletes aguados. Assim sendo, só mesmo a Seara para querer vender a verdadeira lasanha italiana.

De cabeça, só me lembro de outra iguaria gastronômica que provoca disputa por origem e tradição. Falo do requeijão. Todo e qualquer requeijão vendido no supermercado tem em seu rótulo a palavra “tradicional”. Não importa se é um requeijão que você mal consegue pegar com a faca porque ele escorre ou se é um que necessita maçarico e motosserra para ser espalhado no pão. Todos são tradicionais.

Mas nunca ouvi falar de uma disputa pelo verdadeiro churrasco grego, ou pela legítima buchada de bode. Nada chega perto do mistério da verdadeira saltenha.

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