O Fantástico Mundo do Craque Neto

Faz uns três anos que a afiliada local da Rede Globo resolveu transmitir os jogos do campeonato mato-grossense nas noites de quarta-feira e nas tardes de domingo. Um estímulo para o sofrido futebol local, que acaba por nos proporcionar a oportunidade de assistir peladas estratosféricas, em que a bola é tratada como um aidético nos anos 80. Também nos proporciona a chance de mudar de canal e assistir ao Campeonato Paulista na Bandeirantes, onde brilha soberana a estrela do Craque Neto.

Assistir a um jogo com os comentários do Neto é daquelas experiências transformadoras na vida e um homem. George Orwell formou seu caráter nos dias de pobreza extrema como ajudante de cozinha em Paris e Londres. Há quem não se esqueça da vida nas trincheiras da guerra do Vietnã. Assistir um jogo com o Neto comentando é a mesma coisa. Seus comentários imprimem um desconforto psicológico no telespectador que em pouco tempo podem acarretar um ataque de nervos. Superá-los, é uma prova de força mental.

No mundo do Craque Neto não existem meio termos. Ou a revolução do proletariado ou o Estado de exceção com a supressão dos direitos individuais e extermínio dos inferiores. Por mais que nossos olhos nos digam ao contrário, em campos nós não vemos duas dezenas de jogadores medianos numa partida meia-boca do Campeonato Paulista. Ou o sujeito é um perna-de-pau que deveria ser sacrificado junto com os cachorros raivosos, ou ele é um CRAQUE, um BAITA jogador. Romarinho é craque, fulaninho que joga no Penapolense é um BAITA jogador. Paulo Henrique Ganso deveria receber a injeção letal, aquele lateral direito deveria virar limpador de latrinas medievais.

De tal forma, os jogos nunca chegam a ser equilibrados em sua mediocridade. O que vemos é um claro massacre de um determinado time sobre o outro. De um time que está jogando MUITA bola contra outro que não está jogando nada. Mesmo que o time que não esteja jogando nada tenha tido mais finalizações, oportunidades de gol, escanteios, posse de bola. Mesmo que o time dominante não tenha acertado um passe. Nossos olhos mentem, os do Craque, jamais.

Gols são golaços. Cruzamento vadio na grande área, o centroavante cabeceia todo torto para o fundo do gol. GOLAÇO. Pênalti duvidoso, o camisa dez bate com um peteleco no meio do gol. GOLAÇO. E pra fazer um gol assim, não é qualquer um não, não é qualquer leproso que consegue bater na bola desse jeito. Tem que ser CRAQUE. Quem batia na bola assim era só Rivelino e o próprio Neto. Sim, nosso Messias não sofre de falsa modéstia. Ele sabe que ele é capaz de fazer qualquer jogada.

As cobranças de falta e escanteios são um verdadeiro fetiche para o nosso comentarista. Um escanteio mal cobrado o faz espumar de raiva e acredito que os seguranças da cabine tenham que segurá-lo para que ele não desça até a beira do gramado para ensinar aquele energúmeno como é que se bate na bola. Agora nas faltas. Neto poderia ficar os 90 minutos estipulando sobre como é que uma falta poderia ser cobrada. Que o goleiro armou a barreira errada, e que um canhoto deveria cobrar a falta, batendo de rosca na bola por fora da barreira, passando em cima do terceiro homem, no canto oposto do goleiro, entrando no canto superior direito, em baixo. Sim, não tente entender.

Neto também é adeptos de devaneios. Quando ele vai elogiar um time, o Palmeiras, digamos, ele começa a falar que é um bom time, que tem o Alan Kardec fazendo o pivô, chegando na frente, o Valdívia armando ali atrás, o Leandro, que é CRAQUE, caindo na ponta, batendo na bola, jogando ali com o Márcio Oliveira, e quando você vai ver ele já citou todos os seus jogadores e o que eles fazem em campo, inclusive correr e respirar.

O ápice, no entanto, é quando nosso craque sugere algumas alterações em campo. Coisas como, retirar um lateral, para colocar um atacante, recuando o volante pra zaga, adiantando o goleiro pra ponta, recuando o centroavante pra fazer o pivô abrindo espaço pra esse atacante que entrou na lateral entrar na área a e cavar falta pro camisa 10 bater e promover a paz mundial.

Agora e se ele estiver errado? Se as estatísticas mostrarem que o jogador que ele disse que era o melhor em campo, na verdade teve uma diarreia e não chegou a entrar em campo? Simplesmente mude de ideia. O time que não estava jogando nada pode passar a ser amplamente superior e ter jogado MUITA bola quando faz um gol. Neto não tem amarras com o passado. Ele tem a frieza de um estadista.

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