Previsões, Perdas e Danos - Parte 7

Diante do silêncio de Tackleberry no telefone resolvi puxar o assunto.
- Cara, como que você tá, onde você está?
- Eu estou na minha casa.

Naquele segundo comecei a pensar em mil coisas. Maldito fosse o menino Fabinho que deixou o Tackleberry em casa e falou que ele sumiu, nos fazendo de bestas rodando pela cidade com um Papai Noel traficante. Mas, porque o irmão dele estava procurando por ele de manhã?
- Porque você está com meu celular? – perguntou Tackleberry e só então eu lembrei que ele ainda estava sob o efeito do guaraná cristalizado amnésico.
- Cara, é uma longa história. Eu estou aqui com o Vinícius, a gente vai te levar o seu celular e a gente te conta.
- Pode ser mais tarde? Estou com dificuldades em explicar aqui porque eu cheguei em casa sem meu carro e sem meu celular e eu não consigo lembrar de nada.
- Como você chegou em casa?
- Peguei um taxi. Preciso desligar.
- Beleza. Ah, quer um conselho? Toma um copo de leite com Toddy e Nescau misturados.
- Por quê?
- Ah, você vai entender.

Então pensei que poucas pessoas devem ter Toddy e Nescau em casa. Geralmente você tem um ou outro. A vida é assim. Você pode mudar de religião, de time de futebol, de partido político, de opção sexual e de sexo. Mas ou você prefere Nescau ou prefere Toddy. Isso nunca muda.

De certa forma era um alívio saber que Tackleberry estava vivo, restava a curiosidade em saber onde ele estava. Combinei com o Vinícius de passar no Carnicentas para ele pegar o carro dele e mais tarde eu passaria na sua casa, para irmos até o Tackleberry.

Chegamos até a casa de diversão norturna e eles estavam assando um pernil na área externa. Jorginho de Ogum perguntou como estavam às coisas e eu disse que pelo menos sabíamos que o Tackleberry estava vivo e na casa dele, só não sabíamos como ele chegou lá. Expliquei que Hanz foi preso por esfregar o pênis em alguns carros e Jorginho disse que não. Que já havia ido buscar ele na cadeia e a história dos carros foi só o começo da sua noite, depois ele fez coisa muito pior. Eu não quis entrar em detalhes.

Jorginho disse que aquele amigo esquisito nosso também tinha passado por aqui, pegou o carro e foi embora sem falar nada. Bem, isso era um sinal de que ele não morreu por nossa culpa. Contei que ao que parecia, nos envolvemos em uma pequena confusão no centro político e depois fomos até Jangada, onde o Papai Noel quis dar uma mijada na curva em que o Chico Gil morreu...
- Esse cara é um barato – interrompeu o Borboleta.
- E enfim, foi isso o que nós sabemos que aconteceu. – completei.
- Pelo menos ninguém foi violado sexualmente – argumentou Jorginho.

Vinícius foi para sua casa e eu me despedi do pessoal no momento em que Alfredo Chagas apareceu com uma garrafa de Marajá e uma bíblia debaixo dos braços, falando sobre a importância de estar sempre em movimento. Olhei o carro de Tackleberry estacionado sozinho e me lembrei de uma festa na faculdade em que um colega de curso teve que deixar seu carro estacionado no local porque havia perdido as chaves. As chaves, por sua vez, estavam no bolso do Tackleberry. Pensei em como a vida era cíclica e sempre haverá alguém chegando em casa sem o seu carro.

Olhei os papeis da City Lar no chão do carro e pensei em jogá-los fora na hora em que chegasse em casa, uma espécie de resolução de ano novo. Só então percebi que um panfleto anunciava a liquidação pós-natal. Estranhei, porque eu não havia ido para a referida loja nem em qualquer lugar que entregasse papeis da City Lar nos últimos 10 dias. Será que foi em um semáforo? Pensei.
***
O primeiro dia do ano já se encaminhava para seu terço final quando eu cheguei na casa do Vinícius para irmos até o Tackleberry com o seu celular e algumas explicações. Pensei com o Vinícius, que tomara que ele não tenha feito nenhuma tatuagem na cara, arrancado um dente ou algo parecido, porque sempre tem alguém que carrega marcas eternas em situações assim. Vinícius disse que a nossa sorte é que era feriado, então não tinha nenhum lugar aberto. Concordei.

Não demoramos muito para chegar porque o trânsito estava ótimo no feriado. Chegamos até a casa do Tackleberry e ele parecia perturbado. Perguntei se ele tinha tomado o leite e ele disse que não, porque ninguém tem Toddy e Nescau em casa e todos os supermercados estão fechados. Deixei que ele falasse.

Ele explicou que só se lembrava de abrir a geladeira para pegar alguma coisa e depois de acordar num sol escaldante em um lugar desconhecido que ele então reconheceu ser a City Lar em frente a UFMT. Estava deitado no chão.
- E cara, vocês não vão acreditar em quem estava dormindo ali também. Era o L...
- Sim, ele agora trabalha comigo – disse o Vinícius – faz um mês mais ou menos.
Tackle então viu que estava sem o celular no bolso, apenas com sua carteira e resolveu pegar um taxi.
- E o L...
- Ficou lá.

Começamos a explicar então tudo o que aconteceu. Que ele havia ido à Carnicentas para a festa de Réveillon, que lá nos bebemos um pouco e acabamos desafiando Alfredo Humoyhuessos a produzir um coquetel amnésico e então saímos para aprontar altas confusões na rua, ao lado também do Menino Fabinho, do Hanz e de um cara vestido de Papai Noel.

Tackleberry escutava a tudo atenciosamente. Expliquei que o Toddy com Nescau era o antídoto para as frutas cristalizadas. Mas que ao que nós descobrimos, participamos de uma briga provocada por um acidente de carro no Centro Político, depois fomos até Jangada por sua sugestão, e enfim. Depois disso as coisas ainda estavam meio nebulosas, não saberíamos dizer como é que ele foi parar na porta da City Lar e, enfim, era isso o que tinha acontecido.
- O Hanz não sabe de nada?
- Não, ele foi preso por atentado ao pudor.
- O Papai Noel também não?
- Não, ele estava preso no porta-malas.
- E o Fabinho?
- Ele já estava em Primavera do Leste quando acordamos. Ninguém tem o contato dele.
- E o L...
- É, ele talvez se lembre, mas ninguém falou com ele.

Dei uma carona para Tackleberry até a Casa de Diversão, para que ele pegasse seu carro. Ele ainda parecia não acreditar em nada. Chegando lá, o clima estava decadente, com Marcão dançando sozinho uma música de Reginaldo Rossi, enquanto os outros descansavam. Borboleta olhou para o Tackleberry como quem via um fantasma e Tackle me perguntou quem era esse cara. Levei-o até o bar, aonde ele tomou a mistura mágica e voltar a se lembrar do que aconteceu na festa.

Resolvemos voltar para nossas casas e assim terminava aquele primeiro dia do ano conturbado. Antes de sairmos, Pai Jorginho de Ogum disse.
- Vão por mim. Tem coisas que é melhor que vocês nem lembrem que aconteceram.

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