Texto Igual Novela

Doze dias atrás publiquei um texto baseado na então nova novela das deis, aproveitando um gancho para falar sobre o quão curioso é o fato de que monges budistas considerem que alguém é a reencarnação de um fulano superimportante. Como um bom jornalista, pesquisei na internet e descobri que a obra se chama “Joia Rara” – a agora não tão nova novela das seis.

Naquela longínqua semana de estreia, o telejornal local trouxe uma matéria enorme sobre Joia Rara. Em cinco minutos, explicaram a história do clã familiar Hauser, a tragédia familiar no Tibete, quando um filho foi resgatado por monges budistas, a história do budismo, a corrida espacial, as tensões sindicais na indústria têxtil, enfim. Imaginei que eles estavam resumindo pelo menos metade da novela. Qual foi a minha surpresa ao descobrir que o cara que quase morreu no Tibete chegou ao Brasil logo no segundo capítulo?

O tempo é relativo, já diria Albert Einstein. As novelas comprovam isso. Elas narram um tempo fragmentado e distorcido. Seu primeiro capítulo resume a história da humanidade em cinquenta minutos, para depois ficar seis meses narrando um tempo indeterminado, recheado de conversas amenas no café da manhã, encontros casuais em padarias e casais que não trabalham, apenas ficam discutindo sua crise conjugal. Até que nos capítulos finais o tempo corre novamente, as pessoas se casam, morrem e o autor resume como será a vida na Terra ao longo do próximo milênio.

A seguir, apresentaremos a biografia de Alfredo Chagas em formato de novela.

Alfredo Chagas nasceu em Poxóreo, 1967, filho de dois garimpeiros revolucionários, que queriam um Brasil melhor. Com um ano de idade, Chagas estava nos protestos de maio de 68, escutou Jimi Hendrix no festival de Woodstock e apareceu na capa do disco Abbey Road. Em 1984, sentiu o cheiro da revolução e se juntou aos amigos para promover as mudanças que o país precisava. Sua tentativa de instalar uma ditadura oligárquica fracassou e ele fugiu para a Itália, onde levou a vida servindo de falso guia turístico na zona do baixo meretrício de Nápoles.

Em 2004, ele volta para Cuiabá, com um sonho na cabeça. No seu primeiro dia, ele acordou com o bafo quente que entrava pela janela de sua kitnet alugada no Despraiado. Resmungou algumas palavras e foi até o banheiro tentar escovar os dentes, mas percebeu que havia esquecido sua escova na Itália. Maldisse todos os italianos que havia conhecido e resolveu sair para a rua assim mesmo.

Saiu pela rua em busca de um lugar onde ele poderia matar a sua fome. Esperava o semáforo fechar para atravessar a rua quando um carro parou a sua frente e abaixou o vidro. Dentro dele estava Carminha, sua namorada nos tempos de adolescência. Os dois ficaram se encarando por alguns segundos, sem dizer nenhuma palavra. O sinal abriu e os carros começaram a buzinar. Carminha ofereceu uma carona.

Ela era loira, com olhos verdes e o rosto redondo. Alfredo jamais havia a esquecido, do romance tórrido que viveram na juventude. Agora olhava para ela e percebia suas rugas, os peitos caídos e os quilos a mais que preenchiam sua cintura. O tempo foi cruel para seu primeiro amor.

Os dois se lembraram dos velhos tempos e começaram a recordar suas vidas nos últimos 20 anos. Alfredo contou que viveu em um cortiço na Itália, ao lado de uma anã lésbica e de um frei polonês comunista que desafiou a máfia local e um dia apareceu morto com todos os dedos enfiados na garganta. Perguntou para Carminha como ela estava, se casou, se teve filhos.

Ela parou e suspirou. Fechou os olhos e contou que tinha dois filhos, o mais velho tinha 19 anos e se chamava Alfredinho. Uma homenagem a ele, porque o menino era filho de Alfredo Chagas, filho dos anos rebeldes. Ela mostrou uma foto de Alfredinho, que estava estudando arquitetura em São Paulo. Alfredo olhou bem a foto e viu que o menino era a cara do Paulão, companheiro de lutas da época. Fez esse comentário para Carminha, que contou que era casada com Paulão. Pediu perdão, porque na época acreditava-se que Alfredo havia sido enterrado em valas comuns no Araguaia, depois de ter os testículos enfiados no lugar dos olhos.

Alfredo desceu do carro arrasado, após descobri que era corno com 20 anos de atraso. Caminhou por ruas que ele não fazia a menor ideia de como se chamavam. Reconheceu a foto de um antigo companheiro de lutas que agora era candidato a prefeito. “Maldito imperialista”, reclamou. Chegou até uma lanchonete e pediu um misto para Odete, a animada dona do bar que dançava pagode e proferia bordões entre um pedido e outro. Na mesa do lado, um casal discutia a relação entre Júlia e Otávio, ela tinha câncer e ele um filho bastardo com a empregada. Alfredo foi embora.

Decidiu levar uma nova vida. Casou-se com Paulão e descobriu que não era gay. Montou uma Ong de adoção de menores de idade com escoliose, foi candidato a vereador em Poxóreu e organizou o festival do Porco no Rolete de São Gabriel d’Oeste. Instalou um Estado de exceção dentro da sua kitnet no Despraiado. Foi indicado ao prêmio Nobel da paz, mas cagou no tapete vermelho. Viveu feliz para sempre.

Comentários