A graça do piloto de avião

O solitário piloto não pode falar para ninguém que ele não tem a menor ideia da função desses botões no teto

Dirigir um avião não deve ser uma tarefa fácil. Boa parte de nós mal consegue estacionar um carro popular em um espaço de três metros, que o diga pilotar um avião. Cruzar os ares com aquele veículo gigante, com suas longas e expressivas asas. Manobrar o avião na pista, encaixá-lo na tromba de embarque e desembarque, sem permitir nenhum acidente, que teria consequências terríveis para os envolvidos.

Assim sendo, um piloto de avião deve gostar de exibir seu talento. Quando sai com os amigos para tomar um bom vinho sinuelo, tinto suave, ele exibe suas façanhas sobre-humanas. Quando conhece um grupo novo de pessoas, é rapidamente apresentado como piloto de avião e todos ficam espantados com sua presença, garantindo sexo fácil.

No entanto, o piloto de avião não tem como se exibir enquanto pilota sua aeronave. Qualquer cidadão em um carro esportivo popularizado em música sertaneja faz isso, sendo que ele tem muito menos mérito que o piloto. Este não pode dar cavalos de pau, parar no semáforo com o vidro abaixado e ligar o som alto. Na verdade, viajar de avião é um ato totalmente impessoal e tão mecânico, que muitas vezes não vemos o piloto e nem nos lembramos de sua presença. Jamais saberíamos se dentro daquela cabine estivesse um robô ou o Dinho Ouro Preto com nariz de palhaço.

Deve ser uma enorme frustração para o piloto. Por isso, ele precisa arrumar alguma forma para chamar a atenção para sua presença. E o único jeito que ele encontra é ficar falando sem parar durante o voo. Ele e sua tripulação estabelecem um jogo de divertimento, que consiste em não deixar que os passageiros durmam.

A maior parte dos voos é operada em horários catastróficos para a manutenção de um sono saudável. Ou você chega de madrugada, ou precisa acordar de madrugada, ou passa a madrugada esperando dentro do aeroporto, ou do avião. A aeronave não é o lugar mais confortável do mundo para dormir, mas geralmente essa é a única alternativa que resta.

Logo que você chega e acomoda sua bagagem de mão, o comandante se apresenta, fazendo algum comentário sobre o horário previsto de voo. Geralmente esse horário é diferente do que foi impresso no bilhete. Os comissários montam aquela encenação artística sobre os procedimentos de segurança e lembram que os assentos são flutuáveis. O curioso é que em 98% das rotas, o assento não terá a menor função. Se o avião cair, ele irá explodir e a chance de que ele pouse sobre a água é ridícula, exceção feita a aterrissagens malsucedidas no aeroporto Santos Dumont. Temo que ninguém jamais tenha testado se todos os assentos realmente flutuam. O aviso de sua existência faz parte do jogo psicológico.

Quando o avião decola, o piloto volta a falar do tempo estimado até o destino final. Você volta a relaxar e está quase dormindo quando o sistema de som afirma que o serviço de bordo será servido. Antigamente, até poderia ser interessante, mas, hoje em dia, a Gol te acorda para falar que vão passar o cardápio e se você quiser comer, que pague. A Tam informa que vão servir água. Sacanagem te acordar para oferecer água.

Em breve, as aeromoças farão um lúdico
"barata voa", para entreter os passageiros.
O serviço de bordo fake costuma a ser oferecido no primeiro terço do voo. Em uma viagem de 1h30, isso significa que você terá algo em torno de 45 minutos para dormir, depois que os comissários passarem recolhendo o lixo. Mas isso não é possível. O comandante irá lhe privar desse direito, te acordando para tecer algum comentário inútil.

Ele irá te acordar para passar informações técnicas desnecessárias justamente na metade do tempo entre o serviço de bordo e o procedimento de aterrissagem. “Nossa altitude é de 40 mil pés e a velocidade de cruzeiro de 460 nós”. Como se, para nós reles mortais incapazes de identificar o manche naquele painel gigante, fosse possível entender se isso é bom ou se isso é ruim.

Nos voos entre Cuiabá e Brasília, o comandante sempre te acorda para avisar que nós estamos sobrevoando Barra do Garças. Tudo bem, Barra pode até ser a capital do universo, mas não é interessante acordar para vê-la lá embaixo. A não ser que houvesse um disco voador pousando no discoporto da cidade neste exato momento. Qual será a importância da Barra na vida dos pilotos?

O piloto voltará a te acordar para avisar que em breve ele irá começar a descer o bagulho e que a temperatura no destino final é de 18º, céu aberto. Geralmente eles erram feio na previsão do tempo. Uns cinco minutos depois, novo aviso de que agora sim a descida começou e que todos devem afivelar os cintos, voltar às poltronas para a posição vertical e certificar que as bandejas estão travadas. O procedimento de descida começa quarenta minutos antes da aterrissagem em si. As comissárias de bordo passarão em todas cadeiras acordando quem ainda estiver dormindo para avisar qualquer irregularidade, inclusive cadarço desamarrado.

Quando o avião pousa, as aeromoças tentam em vão conter as pessoas que soltam os cintos. Se elas tentassem com dardos tranquilizantes, talvez desse certo. Em um último momento de humor, eles avisam que você deve se certificar da posição dos seus objetos pessoais ao abrir o compartimento de bagagens, porque eles podem ter se deslocado durante o voo. Nessa hora, é impossível não pensar que aconteceu um Toy Story bagageiro durante a viagem.

Comentários