A Repórter da Pasta de Dente

A cena é comum e costuma a invadir nossas casas diariamente durante os intervalos comerciais dos mais variados programas televisivos. Um cidadão está no aconchego do seu banheiro se utilizando de algum produto de higiene pessoal, escovando os dentes, fazendo a barba, passando um desodorante. Abruptamente uma equipe de reportagem invade o seu banheiro.

Falamos de uma equipe de reportagem completa. Uma repórter um cinegrafista e um auxiliar que carrega um microfone ambiente, mesmo que a repórter também tenha um microfone. Ele provavelmente quer captar todos os sons possíveis dentro do banheiro.
E porque eles usam jalecos brancos?
A repórter, sempre uma mulher, então coloca o microfone próximo do cidadão que estava escovando os dentes e faz alguma pergunta idiota para ele: “Você sabia que apenas o creme dental Colgate Plus protege seus dentes de 28 tipos de males que atacam as bocas das pessoas?”. O cidadão, meio assustado responde que não. Eu também não saberia responder. Acho que gritaria para que essas pessoas se afastem de mim. Porque invadiram minha casa e vieram no meu banheiro? E se eu estivesse quebrando um paradigma? Acho que eu ligaria para a polícia. Ficaria catatônico.

Entra então o VT mostrando a ação da pasta de dente e um especialista, sempre eles, explicando porque ele recomenda aquele creme dental. O cidadão que teve a casa invadida se mostra convencido de que deve usar essa pasta até para fazer a barba e limpar a bunda. A equipe de reportagem deixa o banheiro do cidadão repentinamente, como se nada tivesse acontecido. E o cidadão irá trancar a porta do banheiro durante o resto da sua vida. Mas, não sei se adianta, a equipe de reportagem dá a impressão de que poderia entrar pela janela, ou mesmo pela tubulação, se fosse preciso.

Bem, a situação é patética e o comercial é ridículo. Mas eu penso por outro lado. Pense no lado da repórter, como é que ela vive. O cinegrafista e o auxiliar também sofrem, mas estes profissionais geralmente topam qualquer parada. A repórter, imagino que não.

Imagine ele acordando de manhã. Acordando com a frustração. Ela pensa “mais um dia em que eu invadirei o banheiro de um cidadão comum para flagrá-lo escovando os dentes e fazer uma pergunta idiota”. Ela pensa então nos quatro anos em que cursou jornalismo. Que ela sonhava em substituir a Fátima Bernardes no Jornal Nacional, viajar o mundo, fazer grandes reportagens, ser feliz com sua profissão. Mas não. Ela invade banheiros.

Pense no dilema existencial. Não deve ser fácil invadir o banheiro de alguém. Nenhuma pessoa gostaria de ter o seu banheiro invadido. “E se fosse comigo”. Fora o medo. Vai que o cidadão não gosta da situação é que está armado. Reage matando a equipe de reportagem a tiros. Depois, iria sair no jornal “Repórteres do banheiro são assassinados durante trabalho”. E as pessoas iam achar até que era bom.

Pense na repórter do banheiro. Pense na sua rotina. Como será a relação com o seu chefe. Com os amigos. Como ela explica para a família o que ela faz. Pense na sua situação profissional.

Pensando bem, acho que todos esses questionamentos dos últimos três parágrafos se aplicam a qualquer jornalista. Substituindo apenas a parte do invadir o banheiro pela sua ocupação real como “entrevistando celebridades”, “entrevistando vereadores”, “cobrindo assassinatos” ou “assessorando um jogador de futebol”.

Comentários

Daniel Wyllie disse…
Veja esse:

https://www.youtube.com/watch?v=JJay_JGQDvQ