Fala que eu te interpreto

Na última quarta-feira, assim que o juiz Luís Antônio Silva Santos apitou o final da partida entre Vasco e Flamengo, válida pela semifinal da Taça Guanabara, o mundo ainda estava chocado. Todos ainda tentavam entender a façanha realizada pelo atacante Deivid. O seu nãogol ecoava pelo mundo inteiro. Profissionais do mais alto gabarito tentavam entender o que é que havia acontecido.

Foi nesse cenário kafkiano¹, que um repórter da Globo entrevistou o atacante Alecsandro, autor do primeiro gol vascaíno na noite. Ele perguntou sobre a vitória, a classificação e a quebra do jejum. O Vasco não derrotava o Flamengo há três anos. Alecsandro respondeu:
- Desculpa o passado, mas nesse ano em que eu estou aqui eu nunca perdi para o Flamengo. Nós havíamos empatados os outros três jogos. Então, eu ainda estou invicto.
- Taí o Alecsandro, dizendo que essa história de vice acabou – completou o repórter, devolvendo a transmissão para o narrador.

Observem a fala de Alecsandro. Ele bancou o fodão “ninguém-ganha-de-mim”, mas, em nenhum momento ele afirmou que “essa história de vice acabou”. O repórter interpretou isso porque quis.

Essa é uma situação comum no jornalismo. O repórter faz uma pergunta, já querendo induzir a resposta do entrevistado.
- Secretário, nos últimos anos os índices de violência na capital tem aumentado assustadoramente, provocando um completo clima de insegurança entre a população, não é mesmo?

O entrevistado, então, sai pela tangente, respondendo alguma coisa aleatória, para não se complicar.
- Veja bem, o nosso trabalho tem sido realizado com o objetivo de garantir um serviço de qualidade e a satisfação para a nossa população. Se ainda não conseguimos os resultados necessários, não foi por falta de trabalho. Mas estaremos sempre focados no nosso melhor.

O repórter volta e faz uma conclusão própria, que é o que ele gostaria que fosse respondido.
Deivid confirmou que é a favor
do aborto de gols
- Taí o Secretário de Segurança, afirmando que a situação é caótica.

O problema é quando os assuntos ficam mais sérios.
- E então, foi um claro caso de racismo?
- Veja bem, creio que a violência está instalada na sociedade, independente de cor.
- Ai está o professor, afirmando que negros merecem morrer.

- Você é favorável ao aborto?
- Acho que a lei prevê as situações em que isso é previsto e acredito que a lei deva ser aplicada.
- Taí, o candidato afirmando ser favorável ao aborto.

Pior, que depois a interpretação do repórter ganha os jornais, vira verdade e vai parar nas manchetes do jornal.
PROFESSOR AFIRMA QUE NEGROS DEVEM MORRER
CANDIDATO DIZ QUE É FAVORÁVEL AO ABORTO

E os outros repórteres passam a perguntar sobre o assunto.
- Professor, o senhor é racista?
- Candidato, o feto não é uma vida?

Tudo vai ficando pior, a opinião pública começa a se formar em cima da demência mental do repórter.
Claudia diz: “É um absurdo! Estamos em 2012 e um professor de uma Universidade Federal diz que é a favor de um regime de segregação racial! Ele é que devia ser segregado da sociedade! Imaginem os valores que ele está passando para os seus alunos! Cadê a justiça!”.

E tudo terminará em apedrejamento em praça pública.

¹ É plenamente possível que, na manhã seguinte, o atacante Deivid tenha se descoberto uma barata. 

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