O Restaurante Karícia, a princípio, pode parecer apenas um grande equívoco mercadológico, com seu nome que parece pertencer muito mais a um motel de segunda categoria do que a um estabelecimento alimentício. A palavra carícia, por si só, já passa essa conotação erótica, reforçada pela utilização da letra K, que dá aquele ar cafona de nome de motel, como "Motel Kital" e coisas parecidas.
Mas é nesse restaurante, que certamente não está em nenhum Guia Michelin, nem sequer em algum tripadvisor da vida, que centenas, diria milhares, de servidores públicos do Estado de Mato Grosso se alimentaram diariamente. Eu mesmo faço parte dessa estatística. Durante uns bons - talvez não tão bons assim - três anos, bati ponto no restaurante.
O Karícia era o único estabelecimento alimentício da região do Centro Político Administrativo com uma estrutura que lembrasse minimamente um restaurante e que tinha acesso liberado irrestrito para qualquer cidadão esfomeado. O preço do quilo, oscilando na faixa de vinte reais, era outro grande convite.
Para chegar ao restaurante, era preciso ter algum conhecimento técnico da área, já que não havia uma única placa informando a sua localização e nem mesmo um letreiro aparente que reforçasse a sua marca - que consiste em um K com dentes. Havia apenas uma parede branca, por vezes adornada com por um mendigo meio lunático que costuma a segurar o braço das pessoas, pedir um ou dois reais e falar sozinho sobre o holocausto. Para chegar ao Karícia era mais fácil se guiar pelo cheiro.
A falta prolongada de um investimento eficaz em exaustores fez com que o cheiro de comida se mantivesse entranhado no ambiente do restaurante e, por consequência, acabasse penetrando no cabelo das pessoas, nas roupas, enfim, mesmo na alma daqueles que vão almoçar por lá. Por essas e por outras os íntimos conheciam o restaurante pela carinhosa alcunha de “cheirosinho”¹.
Ao entrar nele era possível ver do lado direito as caixas e o amplo espaço de mesas e cadeiras, enquanto o buffet se localiza no canto esquerdo. Os pratos empilhados já demonstram algumas manchas que em um primeiro momento podiam parecer sujeira, mas que na verdade eram apenas marcas de um tempo impiedoso.
O Karícia sempre contava com um amplo repertório de salada para manter a dieta balanceada. Geralmente, quando compramos alface e temos o árduo trabalho de limpar e selecionar as folhas, acabamos por descartar aquelas que estão queimadas, com aspecto estragado ou enferrujadas. Pois, são justamente essas folhas que acabavam no buffet do Karícia. Alfaces perfeitamente enferrujadas, eventuais folhas de rúcula com manchas, uma acelga fatiada com tomate. Tomates em rodelas, que com o passar do tempo vão soltando água e deixando os novos tomates lá repostos boiando em uma pré-sopa de tomate (Ao invés de substituir as tigelas dos alimentos, a administração do restaurante preferia simplesmente repor a comida nos mesmos vasilhames e, depois de algum tempo isso começava a dar um aspecto duvidoso para muitas comidas). Havia também uma maionese certamente com alguns resquícios de salmonella e uma cenoura crua ralada. Uma vez por ano a cenoura costumava ser cozida e servida em fatias grotescas, preservando alguns pedaços de sua casca escura.
Certa vez eu presenciei um alimento de cor azul. Todos nós sabemos que o azul não está entre as cores das coisas que nós comemos e eu não faço ideia do que é que aquilo era. Não ousei perguntar. Não sei de ninguém que tenha experimentado.
O arroz e feijão eram o carro-chefe da casa. Não havia muitas restrições neles. Talvez o arroz devesse ser colocado sobre maços de papel toalha para secar um pouco o excesso de óleo, mas não sei se isso seria tecnicamente viável. O feijão tinha um sabor marcante. Tanto que neste exato momento, ao fechar os olhos, eu me lembro dele. Não com felicidade. Tampouco tristeza. Apenas vazio existencial.
Então nós chegávamos às carnes. Sempre havia um peito de frango com excesso de temperos para dar cor, que eu não sei dizer se foram refogados, fritos, grelhados - acredito que grelhados certamente não. Era uma escolha ruim, mas mais consistente do que as outras opções. Vez por outra havia uma milanesa bovina com muito mais casca do que carne, um fígado acebolado para os corajosos, carnes em tiras nem um pouco convidativas. Nas sextas-feiras eles trabalhavam com peixes. Era possível saber disso quando você ainda estava na esquina e acho que nesses dias nem o mendigo lunático aguentava ficar por lá.
Olhando em retrospectiva, podemos pensar que o Karícia era um trabalho de longo prazo pelo vegetarianismo, nos obrigando a dispensar as carnes e viver de arroz, feijão e hortaliças, poupando o surgimento de diversas vacas expelindo gases poluentes na atmosfera. Talvez.
Na hora de pesar, sempre era o caso de pedir uma coquinha, porque alguns momentos exigem uma coquinha gelada. Comer uma comida hiper-temperada em um restaurante quente e sem exaustor certamente é um desses momentos.
Eles também trabalhavam com sobremesas: pudim, torta de limão e bolo de chocolate. A aparência era boa, mas eu nunca experimentei. Quem experimentou dizia que era bom. A comida do Karícia tinha grande potencial de deixar os seus consumidores cheios, alimentando teorias da conspiração sobre o uso de salitre. Você se lembraria daquela comida até às seis da tarde, pelo menos.
Bem, soube essa semana que o Karícia fechou. Seu local passou a ser administrado por outros empreendedores e que a comida até está boa. Não digo que sinto saudade, mas de certa forma me senti livre para compartilhar essas memórias.
¹ Drama frequente da classe trabalhadora, quase todo proletário terá um restaurante conhecido carinhosamente como “cheirosinho” para chamar de seu.
Comentários
Karicia, saudades...ops, não pera.