Houve um tempo em que as planícies, montanhas e demais
relevos do Planeta Terra eram habitados por contadores de piada. Tipos não
exatamente raros, mas cujas aparições não eram assim tão frequentes. Membros de
uma estirpe milenar dotados de grande memória, graça natural e capacidade de
criar associações variadas entre assuntos cotidianos e uma anedota clássica.
Os contadores de piada apareciam em confraternizações, mesas
de bar e até mesmo, porque não, em velórios, onde descontraiam o ambiente
pesado com uma história engraçada envolvendo defuntos. O bom piadista era
reconhecido e apontado pelos seus convivas e, a partir do momento em que era
identificado na multidão de anônimos, era requisitado para passar o resto da
noite contando anedotas envolvendo portugueses, loiras, papagaios,
homossexuais, judeus, negros, animais e muitas outras categorias cuja menção jocosa
nos tempos atuais provoca, no mínimo, um processo criminal.
Quando não raro dois contadores de piada se encontravam e
eram assim identificados por seus parceiros, eles eram postos para duelar
durante o restante da noite. Uma roda se formava ao redor dos desafiantes e
eles emendavam piadas em sequência, para delírio da plateia. Era história de
loira chupando pau de malandro, papagaio denunciando traição conjugal, homem
sendo currado por cachorro, bêbado estuprado, português vítima de estelionato,
judeu sendo confrontado pelas tristes lembranças do holocausto, viado enfiando
objetos no ânus, enfim, uma série de assuntos muito engraçados que divertiam o
público.
Ary Toledo, mesmo, segue vivo por mais que ninguém saiba. Talvez tenha atualizado seu repertório de piadas com idosos pervertidos |
Os grandes piadistas, falo daqueles que realmente se destacavam entre os melhores, eram de certa forma cultuados. Ganhavam concursos nacionais de piada, gravavam fitas K7 e depois CDs destilando seu humor, faziam shows com ingressos esgotados, onde, sentados, contavam histórias sobre pessoas sendo atingidas por esperma alheio ou homicídio culposo com ocultação de cadáver. Eles davam entrevistas para o Jô Soares e faziam o Bira morrer de rir com um causo de transmissão involuntária de AIDS.
Havia livros de piadas vendidos em bancas, divididos nas
mais variadas seções: piadas de zoofilia, piadas sobre o falecimento de sogras,
piadas sobre erros médicos e um mistério: as piadas de salão. Não se sabe
exatamente que salão é esse e suas histórias não guardam muita semelhança em
forma e conteúdo, mas devem ter sido criadas para abarcar causos muito
engraçados de difícil catalogação.
No entanto, após anos ocupando o topo da cadeia alimentar,
os contadores de piada foram varridos do nosso ecossistema. Acredito que são
várias as razões para que isso tenha ocorrido.
Em primeiro lugar, a evolução de alguns conceitos referentes
à empatia em nossa sociedade nos impedem de achar graça em histórias que
envolvam estupros de vulneráveis, crianças psicopatas e dificuldades cotidianas
na vida de uma pessoa com deficiência.
Depois, precisamos considerar as mudanças provocadas pelo
amplo acesso à internet. Com o surgimento de vários sites dispostos a organizar
e publicar piadas, a anedota perdeu sua tradição de oralidade, alguma coisa
repassada entre as gerações e compartilhada entre os amigos. De repente, mesmo
as mais bem guardadas piadas, verdadeiros segredos de família, passaram a ser
de conhecimento amplo, geral e irrestrito.
Um grande contador de piadas era formado por várias
características, que envolviam a capacidade de memorizar assuntos,
contextualizá-los dentro de uma conversa ou duelo e o domínio cênico do espaço
e do tempo: as pausas dramáticas, a interação com o público, a linguagem
utilizada, além, é claro, de um repertório vasto e até certo ponto inédito para
as pessoas à sua volta. Ninguém queria ver um contador de piadas repetidas. Com
a internet, toda piada se tornou repetitiva.
Os velhos piadistas foram superados pelos comediantes Stand Up, o que mostra que o que era ruim sempre pode piorar |
Fato é que os outrora grandes piadistas hoje em dia se
esquivam dos holofotes. Quando são reconhecidos por alguns amigos de velhos
tempos e apontados como donos de um repertório inigualável, o velho piadista se
recolhe e nega o talento até a morte. Diz que está enferrujado e inventa outras
tantas desculpas, enquanto são observados com um certo espanto pelos outros
ocupantes do mesmo espaço, como se fosse uma espécie rara e infelizmente ainda
não completamente extinta. A própria piada é condenada nos tempos atuais. Se
alguém se atreve a dizer que irá contar uma piada, os espectadores já começam a
separar as pedras e pedaços de pau para atingir o torpe humorista.
Nesse ambiente, sobraram apenas os piadistas ruins. Pessoas sem
o mínimo trejeito para a função, incapazes de gerar alguma risada e capazes de
transformar a mais hilária das histórias em uma poesia do Renato Russo. Pessoas
que geram revolta com suas histórias, não pelo preconceito ou violação dos
direitos humanos nas histórias que contam, mas pela sua absoluta falta de
talento e pela insistência em tentar perseverar em uma função para a qual é
completamente inapta.
Os contadores de piada ruim se proliferam e podem inclusive
chegar aos principais cargos de poder da República. Provavelmente ocupando o
vácuo deixado pelos piadistas de outrora.
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