A Graça do Gordo

Houve uma época em que a gordura fazia parte do padrão estético ideal. Nas pinturas renascentistas, as mulheres sempre mostravam certo grau de adiposidade que é inadmissível nos tempos atuais. Os homens não. Os homens tinham sua musculatura totalmente definida e estavam sempre nus, ou tendo suas vergonhas cobertas por panos maltrapilhos. Tremendas bichonas fetichistas esses pintores renascentistas.
Piquenique animado

Só que esse tempo passou e hoje os gordos são marginalizados em nossa sociedade, principalmente na televisão. A tendência inaugurada nas passarelas se espalhou e hoje nós não temos gordos apresentando jornais, aqueles que eram gordos são forçados a participar de um quadro do programa em que eles têm que emagrecer. Atores gordos são mais raros ainda. Você já viu um formando par romântico principal da novela?

A única coisa que resta para aqueles que estão acima do peso é um papel humorístico. Não é a toa que dois dos gordos mais famosos da televisão brasileira sejam humoristas, ou um deles, porque o outro passou por um processo cirúrgico e hoje utiliza camisetas bizarras e tem mais liberdade para fazer piadas sobre as pessoas gordas que se estrepam nas vídeo-cassetadas.

Agora, todo gordo de novela interpreta um papel cômico canastrão. Nas novelas, os gordos não podem ser médicos, empresários... bem, tudo bem, é difícil definir quais são as profissões dos personagens de novela, porque ninguém trabalha naquela porra, exceção feita às empregas domésticas do Leblon. Aliás, vez por outra aparece uma empregada gorda, que não por acaso, é muito engraçada. No geral os gordos interpretam papeis nos quais eles comem até explodir.

Explicam os psicólogos, ou talvez sejam os psicopedagogos, que os obesos tendem a ser mais engraçados por uma questão de aceitação social. Ainda crianças, no competitivo ambiente do Jardim de Infância, aqueles que são bonitos ou que tem grande aptidão para a prática esportiva começam a se destacar no grupo e para não ser excluído, o gordo tem que contar piadas. Faça rir ou morra.

Haha, ai meu deus, uma gorda
 em traje de banho
De acordo com uma pesquisa do Ministério da Saúde, 48,5% da sociedade brasileira está acima do peso, ou seja, praticamente a metade de nossa população. Entre os jovens, esse número varia entre 30% e 40%. Entro no site da novela das 21h, Amor a Vida, e conto 76 personagens, dos quais 54 parecem ter até 40 anos. Apenas um é gordo, ou seja, nem 2%, muito distante do que encontramos no mundo real. Trata-se da atriz Fabiana Karla, que, adivinhem, é humorista.

Na novela, ela interpreta uma personagem chamada “Perséfone Fortino”. Vocês imaginam a Paolla Oliveira interpretando uma “Perséfone Fortino”? Fabiana é uma gorda fracassada e virgem que quer de alguma forma encontrar o amor. Fabiana Karla poderia interpretar uma mulher que tem um caso com um hippie? Uma mulher que é levada para a Turquia ou uma empregada doméstica vingativa? Jamais.

Aos gordos o que é dos gordos. Eles só podem interpretar papéis de pessoas gordas, nos quais a gordura faz parte do personagem. E são engraçados, claro. Ele nunca será apenas um médico, mas um médico gordo e engraçado. Não será apenas um advogado, mas um advogado gordo. A gordura é intrínseca a sua atuação.

Na novela das sete me parece que não há nenhum gordo. Nem na das seis. Puxo pela memória os atores em sobrepeso e todos me parecem ser comediantes também. André Mattos (meu querido), Leandro Hassun, Cláudia Jimenez, Sérgio Loroza. Todos sempre fazendo uso da melhor piada de gordo que existe. Conhecem uma piada de gordo? Um gordo, hahahaha.

Toca a campainha e a atriz principal abre a porta. Quem é? Um gordo, hahahahahaha, um gordo, que hilário. Eles estão esperando uma visita e para surpresa de todos quem é essa visita? Um gordo. Hahahaha. Aparece um cara para passear com o cachorro e ele é gordo, hahahaha. Não importa se esse gordo é trompetista numa banda de jazz, se ele é tradutor de Dostoievski, se ele fala latim. Na novela, ele será um erudito gordo.

Aquele momento em que a câmera nos tenta passar o riso apenas pela reação ao fato de a pessoa não estar dentro do padrão estético atual, esse momento é das coisas mais constrangedoras que conheço.

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