Arrumações

É uma cena que se repete em todo dia de eleição. Você tem a obrigação de ir exercer a sua cidadania. Mas isso só é possível se você tiver o seu título de eleitor. Um pequeno pedaço de 10x5cm de papel, que talvez tenha sido plastificado. Com certeza, você guardou muito bem o seu título, ele está em um lugar estratégico, tão bem guardado que você não tem a menor idéia de onde é que ele está.

Você tinha certeza que ele estava junto com outros documentos no seu armário. Ou será que ele estava numa pasta? Vão se passar horas, anos, até que você consiga encontrá-lo. Os mais prevenidos irão fazer essa busca com pelo menos um dia de antecedência, mas é provável que os mais desleixados acabem perdendo o tempo e demorem tanto tempo na caçada, que o dia acabe e sua cidadania se perca dentro do seu armário.

Mas, no dia em que você o encontrar – se isso realmente acontecer – em um canto isolado do seu armário, você pensará: porque eu guardei isso aqui? E em um processo de regressão de memória (para qual a hipnose poderá ou não ser utilizada) você se lembrará que o guardou ali, justamente para que não o perdesse. No momento em que você fez essa escolha, você utilizou uma lógica qualquer, achando que isso facilitaria o encontro do objeto procurado em um futuro distante.

Mas agora, calmamente, depois de todo esse sufoco, você fará uma promessa mental de que isso não ocorrerá mais. Dessa vez você vai guardar o título num lugar mais fácil, que poderá ser encontrado facilmente daqui a dois anos, ou quando quer que o título se faça necessário. Não é nem preciso dizer que, daqui a dois anos, você passará pelo mesmo problema, porque a lógica atual já terá expirado.

Pessoas tendem a querer organizar tudo. Separar papéis por pastas, objetos por caixas, que serão devidamente colocados em diferentes partes do armário. Pensam em cores diferentes para as caixas, de forma que fique tudo organizado, colorido. Para que sua arrumação possa ser digna de posar para a PlayFile.

Mas é tudo inútil. De qualquer forma, você terá que procurar o objeto desejado, quando ele se fizer necessário. Está dividido por cores? Ok, mas daqui a seis meses você não lembrará o que cada cor quer dizer. As lógicas se perdem com o tempo. Assim como o tempo que você perderá até encontrar. E não adianta. Você não vai encontrar o carregador do celular, o pen drive ou aquela folha que estava tão bem guardada.

Se os objetos estivessem espalhados sobre a mesa, você perderia algum tempo, mas não tanto, porque você teria a exata noção de que eles estavam por ali. Não é bonito esteticamente, as pessoas podem achar que você é um porco, mas é bem mais eficiente. Pode não parecer, mas toda a bagunça tem alguma organização. Os objetos que parecem estar largados estão ali, ao alcance dos olhos, ao alcance da mente.

O problema acontece quando alguém resolve arrumar suas coisas. Aquela caneta que estava sempre ali ao seu lado, agora está em uma gaveta. O bloco de papel está no armário. Você tem que se levantar para pegá-lo. Procurá-lo no desconhecido.

Pior ainda acontece quando você, por pressão da sociedade, resolver arrumar suas coisas. Servirá apenas para perceber como tudo era mais fácil na época em que as coisas estavam fartamente a sua disposição.

Comentários

Isso mesmo! Jamais coloque a mão na bagunça alheia, ou poderá deixar tudo ainda mais bagunçado - mesmo que acredite estar "arrumando" as coisas.
Laíse disse…
A melhor parte de a minha mãe ter voltado pra Cáceres é que ela não bagunça mais as minhas coisas com a desculpa de estar arrumando.