Cuiabá e a dengue

Eu estava preparando para o CH3 um post sobre a vida dura do trabalhador braçal. O CH3, afinal, é um blog cidadão, tanto que temos um marcador de "serviço" ali do lado. Para o post, tinha preparado uma entrevista com Marcão, pedreiro assumido e de papel passado. Mas eu não tive notícias dele por três semanas. Só havia um lugar que Marcão poderia estar, pensei. Quando Marcão quer pular a cerca, ele corre para a casa de diversão noturna mais próxima. Mas como ele não tem dinheiro, é sempre enxotado da casa de diversão noturna mais próxima e vai direto para o Carnicentas, que não é muito próxima, mas como Jorginho de Ogum é o dono, ele facilmente consegue serviço de graça. Não que o serviço lá valha mais do que isso, claro.

Enfim, sob um sol escaldante na metade do caminho e sob uma chuva torrencial na outra metade, me dirigi ao Carnicentas. Como sempre, lá estavam seus visitantes mais frequentes. O Cão Leproso, que bebericava uma cerveja quente e comia torresmos, e o nefasto Hanz, o Panssexual, que disse que estava ali apenas porque o cheiro do local o deixava inspirado. Preferi não dar ouvidos a isso, mas duvido que isso saia da minha memória. Olhei para Jorginho, que estava ao fundo do local, sentado em uma poltrona com estampa de padrão de zebra, sendo abanado com leques de pena de pavão por duas cortesãs muito feias. Jorginho se levantou, ergueu as mãos com as palmas para cima e disse "entre, por favor". Eu disse que já estava do lado de dentro, e ele disse "tem razão".

Eu queria ir direto ao assunto para sair de lá o mais rápido possível. Perguntei onde estava o Marcão, Jorginho respondeu que ele não estava lá. Completou dizendo que achava isso muito estranho, pois já fazia mais de duas semanas que Marcão não vinha para pular a cerca e isso só poderia significar que ele estava morto. Perguntei se Jorginho já tinha passado na casa dele para ver se a informação procedia. Jorginho negou. Eu mereço, pensei. Perguntei ao Cão Leproso se ele sabia por onde andava Marcão, mas ele deu de ombros. Ao Hanz não perguntei nada. Resolvi ir direto à casa do pedreiro. 

Chegando lá, bati palmas, espantando as galinhas. A esposa de Marcão apareceu ao portão de madeira, convidando para entrar. Antes de entrar, perguntei se o esposo estava, ela confirmou. Entrei para encontrar um Marcão quase moribundo, deitado no sofá rasgado da sala, babando e falando coisas sem sentido. Perguntei o que havia acontecido. A esposa respondeu: "Ah, eu acho qui é pomba gira qui desceu no disgraçado. Já tá assim tem duas semana." Fiquei espantado e perguntei: "E a senhora não fez nada?". Ela repondeu que sim, havia chamado três pais-de-santo, menos o Jorginho, porque segundo ela, Jorginho ficava levando seu esposo para o mau caminho com o Carnicentas. Eu falei: "Mas esse homem está doente, mulher!". Na ocasião, estava passando MTTV Primeira Edição, uma matéria sobre a dengue. Eu falei "mas tá explicado, o Marcão deve estar com dengue". A mulher insistiu que era pomba gira, mas insisti que o pedreiro devia ser levado pro hospital imediatamente. Pô, duas semanas doente. Não sei como não morreu.

Levei Marcão ao hospital, sob protestos da mulher, que não queria gastar dinheiro com internação. Marcão foi mais um a ser atingido pela dengue em Cuiabá, apesar de repetirem praticamente toda hora na tv os modos de prevenção, apesar de todo dia no MTTV falarem sobre as vítimas da doença, sobre o número alarmante de casos. Apesar de Nico e Lau terem feito música sobre a dengue. Apesar de toda hora falarem para não deixar acumular água parada, não deixar os quintais sujos de lixo, de tomar providências quanto a terrenos baldios mal cuidados. Simplesmente não adianta. Eu não sei onde Marcão pegou a doença, se foi na casa dele que é cheia de pneus e garrafas com água parada, ou se foi no Carnicentas, um ambiente propício para praticamente todas as doenças existentes. Só sei que boa parte da epidemia é culpa nossa. O CH3 denuncia.

Comentários

Guilherme disse…
sacanagem, pobre Marcão. O cara iria morrer sozinho sem ajuda de ninguém.

Fato é que acho que a música do Nico & Lau ajuda a propagação da doença. Sempre que vejo, desligo a TV. Várias pessoas devem fazer tambémm.